sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Aula 8. História Cultural: posições e tendências


UFF/CEG/ICHF

Métodos e Técnicas de Pesquisa em História.
Profª.: Ana Maria Mauad.
Aula 8.
História Cultural: posições e tendências
META DA AULA
Nesta aula, vamos identificar as principais tendências e conceitos da História cultural.
OBJETIVOS
Após o estudo do conteúdo desta aula, você deverá ser capaz de:
1. Caracterizar a genealogia dos estudos de História Cultural.
2. Identificar os debates teóricos em torno do campo da História Cultural.
3. Apresentar uma definição para História Cultural.
 
Introdução:
No cenário da História, três histórias:
A de um moleiro da região do Friuli na Itália do século XVI, Menocchio, perseguido e condenado à fogueira pela Inquisição, por comparar anjos a vermes, ao tentar explicar a formação do mundo ao seu inquisidor: “tudo era um caos, isto é, terra, ar, fogo  e água juntos; e de todo aquele volume se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram anjos” (Ginzburg, 1987).
No ano de 1540, no Languedoc, um camponês rico, Martin Guerre, abandona sua mulher, filho e propriedades e, durante muitos anos, não há notícias suas. Tempos depois, um camponês chamado Arnaud du Tilh, é processado por bígamo e impostor, ao assumir o lugar de Martin Guerre, verdadeiro marido de Bertrande. Tema do livro da historiadora norte-americana, Nathalie Davis (1987), que utilizou ampla documentação inquisitorial para desvendar o mistério da troca de maridos, depois adaptado para o cinema pelo diretor francês, Daniel Vigne (1982).
E, por fim, a história do ritual de venda de esposas na Inglaterra do século XVIII e XIX, analisado no clássico artigo de E.P Thompson Folclore, antropologia e história social (1977). O ritual que aos olhos dos historiadores folcloristas tradicionais era condenado  como imoral passa a ser explicado por Thompson como uma espécie de divórcio amigável:
“Na maioria das vezes, o casamento precedente já estava arruinado, e pode-se demonstrar que o pregão público era fictício. O comprador da esposa já havia sido combinado e, em muitos casos, era amante dela. Mais ainda: o marido que vendia a cônjuge, comportava-se com uma generosidade mais humana que a encontrada nos atuais processos de separação. A transação era desenrolada ante o olhar da audiência, e o marido cobria a vergonha de ter perdido a mulher, primeiro com a encenação da venda, depois com um ou outro gesto de liberalidade e boa vontade. Comumente, ele destinava toda, ou quase toda, a pequena soma angariada com a venda aos brindes à saúde do novo casal, que eram oferecidos na taberna da praça do mercado” (Thompson, 1977, in: Negro e Silva (orgs.) 2001, p.237)
O que essas três histórias têm em comum? Qual é a sua relevância para o conhecimento histórico? Muitas outras perguntas são levantadas quando se trata de buscar compreender e explicar práticas culturais passadas, cuja lógica nos escapa, mas cujo conhecimento permite que a gente se conheça melhor, também. Esse olhar “antropológico”, que valoriza a diferença, que se debruça sobre os desvios e situações marginais, que avalia as expressões cotidianas e corriqueiras de um passado distante como o jogo contínuo entre as práticas sociais e os seus modos de se deixarem ver através das evidências do passado, pode ser considerado uma primeira aproximação à história cultural. Ou ainda, a uma história que tem nas expressões culturais seu principal foco de interesse.
Nesta aula, vamos estudar a formação do campo da história cultural, caracterizar os debates em torno da história social da cultura ou de uma história cultural, sem enfatizar o social, e por fim, identificar os conceitos-chave para o estudo das práticas e experiências sociais relacionadas ao mundo da cultura.
1. Da tradicional história do cotidiano à história das práticas e representações culturais.
Em livro lançado em 2004, na Inglaterra, e com tradução de 2005, no Brasil, o historiador inglês Peter Burke lança a pergunta já no título : “O que é história Cultural?”.
 Para responder a essa pergunta, o autor propõe uma via de mão dupla. Por um lado, estuda a constituição do campo com seus debates e conflitos, mas também tradições compartilhadas. Por outro lado, debruça-se sobre a atividade do historiador dedicado à história cultural, avaliando suas propostas e tendências segundo as historiografias que assumem recortes eventualmente nacionais, como explica Burke:“Para ser um pouco mais preciso, o trabalho individual dos historiadores culturais precisa ser localizado em uma das diferentes tradições culturais, geralmente definidas em termos nacionais” (Burke, 2005, p.10). Na seqüência da sua argumentação, arrola a contribuição alemã desde o século XVIII, a inglesa, a norte-americana e, por fim, a francesa, com grande ênfase na Escola dos Annales.
No entanto, para dar conta da reposta à pergunta central do livro – o que é história cultural? – Burke nos fornece uma trilha importante para compreendermos a construção histórica de um campo de estudos que só vem crescendo, nos últimos 10 anos, com um número cada vez maior de títulos e publicações diversas. De sua proposta de roteiro vamos focar alguns alguns pontos básicos para orientar nosso estudo.
Boxe explicativo
Burke organiza uma periodização para a construção do campo de estudos da história cultural que vale de orientação básica: “A história pode ser dividida em quatro fases: a fase ‘clássica’ (1800-1950); a fase da ‘história social da arte’, que começou na década de 1930; a descoberta da cultura popular, na década de 1960; e a ‘nova história cultural’, mais recente” (Burke, 2005, p.15-16)
Para evitar enganos, o autor avisa que as divisões entre as fases não são rígidas, que se pode avaliar uma série de semelhanças e continuidades, além das diferenças que marcam a mudança de um momento para o outro.
Boxe de explicativo
1.1 Os precursores da história cultural
A história cultural, ou da cultura, como em breve discutiremos, não é uma invenção recente, como as demais linhas historiográficas que estudamos, possuem uma referência a uma origem comum, no século XIX. Neste momento, quando a história se profissionaliza em compasso com a formação dos Estados Nacionais, efetivamente, ocorre uma disputa em torno dos grandes temas através dos quais as nações elaborariam um modelo de passado.
Nesse regime de escrita da história, o passado conta como ensinamento para orientar as gerações que construiriam a nação no futuro. A história política, como vimos na Aula 19, funcionou bem na instrução de modelos de ação, no mundo da política e do poder de Estado. Entretanto, não trazia elementos para dar uma forma ao sujeito coletivo da nação: o povo, com suas tradições e costumes, construindo o campo do folclore.
Nesse sentido, enquanto a política era o mundo das elites e dos líderes da nação, a cultura do povo pertencia a um mundo fragmentado de sujeitos indeterminados, cuja expressão caberia aos estudiosos darem uma forma nacional. Os processos de formação da nação associaram aspectos da luta política de conformação dos Estados Nacionais aos processos de invenção de tradições, que contou com o discurso histórico para sedimentá-las. Elabora-se assim um campo da história voltado para a cultura do povo e seus costumes.
A bibliografia sobre História cultural é unânime em estabelecer o movimento Romântico (o mesmo que associamos ao advento da História Política), para fomentar a valorização do folclórico e da história dos costumes, como elementos de construção da identidade nacional. Dessa forma, explica a historiadora gaúcha Sandra Pesavento:
“No decorrer da primeira metade do século XIX, o espírito romântico produziu historiadores preocupados em escrever histórias nacionais, que fossem atrás da captura do espírito do povo, da alma das nações, que recuperassem os heróis com seus grandes feitose que registrassem a saga da construção de cada Estado, a demonstrar que o germe da identidade nacional já estava presente naquele tempo das origens, com seus pais fundadores” (Pesavento, 2003, p.19)
Em termos de historiografia, três nomes se destacam no registro de uma história cultural clássica, são eles: o francês Jules Michelet, o suíço Jacob Burckhardt e o holandês Johan Huizinga, cujas obras marcaram as últimas décadas do século XIX e o início do século XX.
Jules Michelet (1798-1874) foi responsável pelas grandes Histórias de França (1868), do seu povo e da sua revolução. Como republicano fervoroso que era, identificou em sua forma de escrever a História, o povo, como personagem protagonista dos acontecimentos históricos, e forneceu a história um sentido: o triunfo da liberdade republicana (Tetard, 2000, p.89). Como historiador, Michelet recupera as sensibilidades e os sentimentos, aqueles ingredientes do espírito nacional, num minucioso trabalho de pesquisa e compilação de documentos originais.
Na avaliação de Pesavento, Michelet inaugurou uma nova forma de trabalhar a História, notabilizando-se, também, pela escolha de temas pouco convencionais, dentre os quais: a mulher ou a feiticeira. Nesse sentido, complementa a historiadora, “Jules Michelet será considerado, particularmente pelos historiadores franceses, como uma espécie de ancestral, um historiador da cultura que portava uma nova sensibilidade para olhar o mundo” (Pesavento, 2003, p.20)
O suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), autor da célebre obra “A civilização da Renascença na Itália” (1860), juntamente com Johan Huizinga (1872-1845), autor de outra reconhecida obra, “Outono da Idade Média”, são considerados os exemplos clássicos de historiadores culturais cujas obras ainda são consideradas relevantes.
Segundo a avaliação de Peter Burke, “Burckhardt e Huizinga tanto eram artistas amadores como amantes da arte, e davam início aos seus famosos livros para entender certas obras, colocando-as e seu contexto histórico” (Burke, 2005, p.16) Certamente, continua Burke em sua avaliação, não é por acaso que, ambos autores considerados os principais historiadores culturais do período tenham escrito seus livros para o grande público e que a história cultural tenha tido tanto sucesso no mundo de língua alemã antes da unificação da Alemanha. Ambos os fenômenos se explicam, por ser a Alemanha de então muito mais uma comunidade cultural do que política, na qual a história cultural e a história política eram vistas como alternativas ou mesmo opostas (Burke, 2005, p.17).
Em comum, Burckhardt e Huizinga tinham o seu método de trabalho, considerado um tanto impressionista, e a valorização dos aspectos culturais em relação às experiências que os geraram. Burckhardt deu relativamente pouca ênfase a história dos acontecimentos, preferindo evocar uma cultura passada e salientar o que chamou de seus elementos recorrentes, constantes e típicos. Na explicação de Burke, “trabalhava intuitivamente, mergulhando na arte e na literatura do período que estava estudando e produzindo generalizações que ilustrava com exemplos, anedotas e citações” (Burke, 2005,p.18).
Huizinga, por sua vez, defendia que a principal tarefa do historiador da cultura era a de apresentar os padrões de cultura, ou seja, descrever os pensamentos e sentimentos característicos de uma época e suas expressões ou incorporações nas obras de literatura e arte. Burke explica que para Huizinga, o historiador “descobre esses padrões de cultura estudando ‘temas’, ‘símbolos’, ‘sentimentos’ e ‘formas’” (Burke, 2005, p.19). Assim, as formas ou regras culturais eram a base do método de interpretação desse autor.
A tradição da historiografia cultural alemã, muito pouco estudada no Brasil, não se limita aos precursores do gênero, tendo exercido importante influência em diferentes setores das Ciências Sociais e da História.  Segundo Burke (2005) a trajetória dessa historiografia alemã foi marcada pelo fenômeno da diáspora intelectual ocorrido durante a primeira e segunda guerra mundial.
A hipótese do autor é a de que a perseguição aos intelectuais, notadamente os de origem judaica, promoveu a referia diáspora desses intelectuais para os países anglo-saxônicos, notadamente a Inglaterra e os Estados Unidos:  “Como nos Estados Unidos, a grande diáspora foi importante para a ascensão da história cultural na Grã-Bretanha, assim como da história da arte, da sociologia e de certos estilos de filosofia. [...] O fato é que a chegada de um grupo de acadêmicos emigrados da Europa Central fez com que o estudiosos britânicos e norte-americanos tomassem uma consciência mais aguda da relação entre cultura e sociedade” (Burke, 2005, p.26-27)
O núcleo central da tradição a  que se refere Burke foi composto pelos intelectuais integrantes do círculo de Warburg, fomentado pelo historiador da arte Aby Warburg (1866-1929) nas décadas de 1910 e 1920, que depois a dar origem ao Instituto Warburg situado primeiramente na cidade de Hamburgo, transferindo-se em 1933, para a Londres vinculando-se a Universidade de Londres.
Aby Warburg, apresenta Burke “era um homem de recursos próprios, filho de banqueiro, que deixou sua herança para o irmão mais novo em troca de uma mesada suficientemente grande para comprar todos os livros de que precisasse – e ele acabou precisando de muitos, já que seus interesses extensos incluíam filosofia, psicologia e antropologia, bem como história cultural do Ocidente, desde a Grécia antiga até o século XVII” (Burke, 2005, p.21
Suas idéias sobre a relação entre arte e sociedade foram fundamentais para a superação da história da arte como história dos estilos e para aproximação entre os conceitos de cultura e sociedade. Para Warburg, “Deus está no detalhe”, ou seja, qualquer análise que aspire uma síntese mais ampla e complexa deve partir do estudo do detalhe, do indício, do traço e dos aspectos particulares.
Ao estudar a história cultural do Ocidente, Warburg dirigiu o foco para os esquemas e fómulas culturais, os gestos que expressam emoções particulares.   A idéia do esquema mostrou-se estimulante para historiadores culturais e outros, dando origem a toda uma tradição historiográfica com estudos que incluem desde a história social da arte até os recentes trabalhos de micro-história. Sobre a influência de Warburg na micro-história vale a leitura do texto de Carlo Ginzburg, “De A. Warburg a E. H. Gombrich: Notas sobre um problema de método” (1989).
Não se pode deixar de incluir nessa diáspora intelectual alemã o grupo associado ao Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, identificado como a Escola de Frankfurt. Como vimos na aula 16, esse grupo foi um dos grandes responsáveis por associar a abordagem marxista à análise das diversas expressões culturais da sociedade industrial. A teoria crítica desenvolvida pelo grupo foi responsável pela valorização do papel desempenhado pela produção cultural nas análises sobre a sociedade industrial e sobre a relação entre modernidade e capitalismo.
Em linhas gerais, e guardando a variedade de abordagens e ênfases, os precursores da história cultural, em sintonia com as perspectivas do seu tempo, buscaram construir uma história alternativa à narrativa dos grandes fatos políticos. Essa história trouxe a tona os costumes, as expressões artísticas, a imaginação, entre outros aspectos simbólicos da experiência histórica, não como fenômenos de um espírito abstrato, mas como prática de sujeitos identificados no tempo e no espaço da História.
O contato com as ciências sociais agregou valor teórico e conceitual a essas abordagens, notadamente, a aproximação com primeiramente com a sociologia da arte e mais tarde com a antropologia social, com a semiótica, entre outros contatos extramuros da História, mudaria os rumos da história da história cultural.
Boxe de atenção
Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre podem ser considerados  também os precursores de uma história cultural. Como vimos na Aula 16, cada um com sua próprias referências teóricas, revolucionaram a forma de explicar o Brasil, da busca das suas raízes (lê-se: matrizes culturais) até o cotidiano dos sobrados e mocambos ou das casas grandes e senzalas, na obra desses dois historiadores a história do Brasil foi passada a limpo, com uma nova narrativa, outros personagens e variados cenários.
Vale rever o que foi dito sobre os dois autores, na Aula 16, cujas obras foram produzidas num momento-chave de redefinição dos projetos políticos e sociais do Brasil aos anos 1920 e 1930.
Boxe de atenção
2. Da História das mentalidades à  História Cultural
A História das mentalidades, hoje já bastante criticada por ser “impressionista”, heterogênea, sem uma metodologia adequada aos temas que propunha tratar, já foi a musa da historiografia francesa nos anos 1970. Nessa época, a noção de mentalidades se referia a tudo e a todos que evidenciassem os desvios, as práticas culturais pouco difundidas, aos sujeitos marginalizados, as crenças obscuras, aos símbolos e mitos, cuja compreensão ainda não tinha atingido as fronteiras da História, mas que pressionava por invadir os seus campos.
Segundo o historiador norte-americano Robert Darnton, a História das Mentalidades, “é a tentativa de reconstruir a cosmologia do homem comum ou em termos mais modestos de entender as atitudes, os pressupostos e as ideologias implícitas de grupos sociais específicos” (Darnton, 1990, p.231). Darnton avaliava nos anos 1980, quando escreveu seu artigo sobre “História das Mentalidades”,  que o estudo das mentalidades, embora remonte a Burckhardt, passava por um grande ressurgimento tanto na França quanto nos Estados Unidos e Grã-Bretanha.
Verbete
Robert Darnton – nasceu a 10 de maio de 1939 em Nova York. É professor de História da Universidade de Princeton, especialista em História Cultural. Dentre os títulos publicados no Brasil, destaca-se O Grande Massacre dos Gatos (1989), que analisa episódios da História Cultural Francesa.
Fim do Verbete
Nesse artigo, o historiador avalia o campo da história das mentalidades, sugestivamente, pelos dois  temas que a qualificariam: a criminalidade e a morte. Na  sua conclusão, apresenta um balanço que define, em certa medida, um destino para  História das mentalidades:
“os historiadores das mentalidades estão examinando a cultura popular, o folclore, a vagabundagem, as relações familiares, a sexualidade, o amor, o medo e loucura. Eles abordam esses diferentes temas com métodos diversos: estatística, demografia, economia, psicologia social, o que quer que pareça apropriado. Embora seja muito cedo para avaliar seus trabalhos, um primeiro reconhecimento, sugere um imperativo metodológico: ao invés de confiar na intuição numa tentativa de invocar um vasto clima de opinião, seria o caso de tomar pelo menos uma disciplina sólida dentro das ciências sociais e utilizá-la para relacionar a experiência mental com as realidades sociais e econômicas.
Essa conclusão, porém, em um ar suspeito de senso comum. Hoje em dia, poucos historiadores objetariam a idéia de aplicarem a ciência social ao seu ofício, mas poucos concordariam sobre a maneira de aplicá-la. [...] O ecletismo metodológico não oferece nenhuma solução real para os problemas de relacionar as transformações das atitudes com o desenvolvimento social e econômico. [...]
Talvez as contribuições de Burckhardt, Huizinga e mesmo de Lucien Febvre à História Cultural tenham ido mal interpretadas por seus sucessores: pois esses primeiros mestres atribuíram considerável grau de autonomia as forças culturais. Não tratavam a cultura como um epifenômeno [acontecimento ocasional]  da sociedade. Entendiam-na como fazem alguns antropólogos atuais. A concepção antropológica do homem como um animal que anseia por sentido, e da concepção de mundo como um princípio ordenador persistente da existência social, pode, em última análise, avançar mais do que a quantificação tripla [refere-se a noção de Pierre Chaunu, das mentalidades como um terceiro nível da sociedade, ou ainda a concepção tradicional marxista da cultura como superestrutura], para entender o material que os franceses vêm escavando numa profusão tão fantástica entre as riquezas do seu passado. Se essa profecia se confirmar, parece evidente que a história das mentalidades já constituí um gênero importante, e já obrigou os historiadores a verem a condição humana sob uma nova luz desconhecida” (Darnton, 1990, p.254-255)
A “profecia” lançada por  Darnton nos anos 1990 talvez não tenha se realizado nos termos de uma história das mentalidades, mas seus temas e interesses foram deslocados para um novo campo de estudos, a História Cultural.
No capítulo cinco do livro Domínios da História (1997), intitulado: “História das Mentalidades e História Cultural”, o historiador Ronaldo Vainfas, apresenta a trajetória, as posições e os debates no  campo de estudos sobre cultura e história. Em sua abordagem relaciona os desdobramentos do campo de estudos das mentalidades para a análise da cultura, como resultado da aproximação criteriosa entre História e Antropologia (Vainfas, 1997, p.145)
Na sua avaliação, no que pese a variedade de estilos e propostas,   História Cultural pode ser compreendida a partir de três categorias, que orientam as três principais abordagens do campo, são estas: .
“(1) recusa do conceito vago de mentalidades; (2) preocupação com o popular; (3) valorização das estratificações e dos conflitos sócio culturais como objeto de investigação. Assim sendo, e sem a pretensão de esgotar o assunto, creio ser possível selecionar três maneiras distintas de tratar a história cultural que, sem prejuízo de outras, permitem distingui-la com alguma nitidez da ‘antiga’ história das mentalidades:
1.       A história da cultura praticada pelo italiano Carlo Ginzburg, notadamente sua noções de cultura popular e circularidade cultural presentes quer em trabalhos de reflexão teórica, quer nas suas pesquisas sobre religiosidade, feitiçaria e heresia na Europa do século XVI.
2.       A história cultural de Roger Chartier, historiador vinculado, por origem e vocação, à historiografia francesa – particularmente os conceitos de representação e de apropriação expostos em seus estudos sobre ‘leituras e leitores da França do Antigo Regime’.
3.       A história da cultura produzida pelo inglês Edward Thompson, especialmente a sua obra sobre os movimentos sociais e o cotidiano das ‘classes populares’ na Inglaterra do século XVIII” (Vainfas, 1997, p150-151)
É interessante, observar na diferenciação proposta por Vainfas, a denominação de dois termos para designar os estudos de cultura no campo da historiografia. Ora se denomina história da cultura ora história cultural, o que implica essa diferenciação ser tratada na terceira parte desta aula.
3. História da cultura ou história cultural? Aspectos de um debate.
Num primeiro momento, a diferenciação entre história cultural e história da cultura, ou ainda história social da cultura, pode parecer uma mera questão semântica. Entretanto, essa diferenciação de nomes revela diferentes posturas em relação ao papel desempenhado pela cultura na sociedade.
Nas aulas anteriores, vimos que o debate atual da história se faz em torno da disputa de duas importantes posições dentro do campo historiográfico, que poderiam ser resumidas na oposição de uma história social que tem como horizonte a síntese e a explicação da totalidade das relações sociais e uma outra tendência, que não coloca a totalidade, ou a realidade, ou ainda o real externos ao próprio objeto analisado, como um problema a ser resolvido, apesar de considerarem a materialidade e existência real de tais objetos no passado.
Assim, na base da diferenciação entre história cultural e história da cultura estão duas atitudes epistemológicas diferentes em relação à forma como as experiências culturais são estudadas. No primeiro caso, como práticas e representações sociais, como textos que dão a ler o mundo social; e na segunda a experiência cultural se inscreve na dinâmica dos grupos sociais e na forma como tais grupos assumem o seu papel como sujeitos históricos. Nesse caso, as expressões culturais são sempre resultado de um trabalho de produção de sentido social.  A primeira se inscreve na tradição da historiografia francesa dos Annales e a segunda na tradição marxista da Nova Esquerda Inglesa.
3.1 Por uma história das práticas e representações sociais.
Roger Chartier, na introdução do seu livro “História Cultural: entre práticas e representações”, publicadas originariamente em 1982, define os protocolos da história cultural e suas principais referências teóricas.
Verbete
Roger Chartier, nascido a 9 de dezembro de 1945, é professor e diretor do Centro de Pesquisas Históricas na École des Hautes Etudes em Ciências Sociais na França. Seus estudos concentram-se na importância da leitura na Europa moderna e explora a relação entre o texto e o leitor na era da informática.
Fim do Verbete
Vamos acompanhar em primeiro lugar a definição que Chartier fornece para a História Cultural:
“A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momento uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão  do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis consoante as classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível  e o espaço a ser decifrado.
As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem as utiliza.
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas, condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio. Ocupar-se do conflito de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se do social, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais.
Deste modo, espera-se acabar com os falsos debates desenvolvidos em torno da partilha, tida como irredutível, entre a objetividade das estruturas (que seria o terreno da história mais segura, aquela que, manuseando documentos seriados, quantificáveis, reconstrói as sociedades tais como eram na verdade) e a subjetividade das representações (a que estaria ligada uma outra história, dirigida às ilusões de discursos distanciados do real). Tal clivagem atravessou profundamente a história, mas também outras ciências sociais, como a sociologia ou a etnologia. [...] Os debates recentes entre os defensores da micro-história e os da história sociocultural serial herdeira direta da história social, ilustram bem essa polarização.[...] Tentar ultrapassá-la exige,antes de mas, considerar os esquemas geradores de cada grupo ou meio, como verdadeiras instituições sociais, incorporando sob a forma de categorias mentais e de representações coletivas as demarcações da própria organização social. [...] O que leva seguidamente a considerar estas representações como as matrizes de discursos e de práticas diferenciadas que têm por objetivo a construção do mundo social” (Chartier, 1990, p.16-18)
O que podemos compreender de sua definição: primeiro, o que está em jogo na análise da cultura é a forma como essa se revela pelas representações. Em seguida, o autor explica que essas representações são produzidas na dinâmica dos grupos sociais e envolvem o estudo das suas práticas e estratégias. Reafirma na sua definição que o objetivo do estudo das práticas e representações não é afastar-se do mundo social, mas compreender como ele é elaborado, como ele adquire sentido para os agentes históricos. Rejeita a tirania do social, como uma totalidade ou estrutura que se impõe ao grupo externamente.
As referências teóricas de Chartier remontam à sociologia de Durkheim, à tradição da História Cultural alemã (Burckhardt e Huizinga), e ainda das leituras do sociólogo alemão Norbert Elias, além, é claro, do historiador francês Lucien Febvre (um dos fundadores do movimento dos Annales). Apoiado em tais autores, Chartier propõe pensar “uma história cultural do social que tome por objeto a compreensão da formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é ou gostariam que fosse” (Chartier, 1990, p.19).
Verbete
Norbert Elias – nasceu em Breslau em 1897 e morreu em Amsterdam em 1990. Sociólogo, estudou medicina, filosofia e psicologia nas universidades de Breslau e Heilderberg. Abandonou a Alemanha nazista em 1933, indo primeiro para a França e depois para a Inglaterra, onde foi professor de sociologia na Universidade de Leicester (1945-62); lecionou mais tarde como professor visitante em universidades na Alemanha, Holanda e Gana.
Fim do Verbete
Em outro texto denominado “O mundo como representação” (2002), Chartier discute a posição da história no debate sobre a crise dos paradigmas nos anos 1990.  Considera que o campo dos estudos históricos vem passando por profundas mudanças associadas  à renúncia dos protocolos clássicos da história social de ambição totalizante ou, ainda, nas palavras do autor “renunciando ao primado tirânico do recorte social para dar conta das variações culturais” (Chartier, 2002, p.67)
Tal movimento possibilitou o gradual deslocamento de uma história social da cultura para uma história cultural do social,  definida como um campo para se estudar as estratégias de apropriação, definidas segundo Michel de Certeau.
“A apropriação tal como a entendemos visa uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os produzem. Dar assim atenção às condições de construção do sentido (na relação de leitura, mas também em muitas outras) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que nem as inteligências nem as idéias são desencarnadas e, contra os pensamentos do universal, que as categorias dadas como invariantes, devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias históricas” (Chartier, 2002, p. 67-68).
Nesse sentido, o procedimento proposto por Chartier afasta-se da possibilidade de considerar que cada posição social envolve a adoção de práticas sociais predeterminadas, e rejeita as divisões clássicas entre cultura popular e cultura de elite ou, ainda, a existência de culturas de classe. Segundo o historiador,
“as divisões culturais não se ordenam obrigatoriamente segundo uma grade única do recorte social, que supostamente comanda a desigual presença dos objetos como as diferenças nas condutas. A perspectiva deve então ser invertida e delinear, primeiramente, a área social onde circulam um corpus de textos, uma classe de impressos, uma produção ou uma norma cultural. Parte assim dos objetos, das formas, dos códigos, e não dos grupos, leva a considerar que a história sociocultural viveu por tempo demais sobre mutilada do social. Privilegiando apenas a classificação socioprofissional, ela esqueceu que outros princípios de diferenciação, também plenamente sociais, podiam justificar, com mais pertinência as variações culturais. É o caso das pertenças sexuais ou geracionais, as adesões religiosas, as tradições educativas, as solidariedades territoriais, os hábitos profissionais” (Chartier, 2002, p. 68-69)
Verbete
Michel de Certeau - historiador francês nascido nos anos 1920 e falecido na década de 1980. Foi padre jesuíta e um dos responsáveis pela aproximação entre história e psicanálise. Autor, entre outras obras, do livro A Escrita da História, que discute o significado de historiografia, tratando da relação entre a história e a escrita, ao mesmo tempo em que opera com  uma outra relação: entre o real e o discurso.
Fim do Verbete
Vale, portanto, evidenciar que, dentro da proposta de Chartier, o objeto precípuo da história cultural é o estudo da produção de representações sociais definidas como relação entre os sujeitos e o mundo social, tal como explica:
“A noção de representação coletiva autoriza a articular, sem dúvida  melhor do que o conceito de mentalidade, três modalidades da relação com o  mundo social: primeiro, o trabalho de classificação e de recorte que produz as configurações intelectuais múltiplas pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de estar no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças as quais ‘representantes’ (instancias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpetuado a existência do grupo, da comunidade ou da classe.
Uma dupla via é assim aberta: uma que pensa a construção das identidades sociais como resultando sempre de uma relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm o poder de classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma, portanto, à sua capacidade de fazer com que se reconheça sua existência a partir de  uma exibição de unidade. Trabalhando sobre as lutas de representações, cujo objetivo é a ordenação da própria estrutura social, a história cultural afasta-se sem dúvida de uma dependência demasiado estrita em relação a uma história social fadada apenas ao estudo das lutas econômicas, mas também faz retorno útil sobre o social, já que dedica atenção às estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem para cada classe, grupo ou meio, um ‘ser-percebido’ constitutivo de sua identidade” (Chartier, 2002, p.73-74).
Dentro dessa perspectiva, o mundo social é apropriado através das representações sociais pelos sujeitos na sua experiência de estar no mundo. Chartier enfatiza, também, a materialidade das formas e processos de recepção, daí o binômio - práticas e representações - , segundo o qual todas as práticas geram representações que, por sua vez, geram novas  práticas num processo contínuo de produção de valores e normas culturais. Vale mais uma longa citação das idéias do autor, para seguirmos atentamente a sua reflexão:
“Foi sem dúvida essa atenção atribuída às ‘formalidades práticas’ (segundo a expressão de Michel de Certeau), quer se referissem à produção ou a recepção, que mais alterou uma maneira clássica de escrever a história das mentalidades. Primeiramente, obrigando-a a considerar os discursos e seus próprios dispositivos discursivos, suas articulações retóricas ou narrativas, suas estratégias persuasivas ou demonstrativas. As organizações discursivas e as categorias que as fundam – sistemas de classificação, critérios  de recorte, modos de representações – não são redutíveis às idéias que elas enunciam ou aos temas que sustentam. Elas têm uma lógica própria – e uma lógica que pode muito bem ser contraditória em seus efeitos com a letra da mensagem. Segunda exigência: tratar os discursos em sua descontinuidade e sua discordância. Por muito tempo, pareceu fácil o caminho que fazia concluir da análise temática de um conjunto de textos à caracterização de uma ‘mentalidade’ (ou de uma ‘visão de mundo’ ou de uma ideologia’), e depois fazia passar desta a uma atribuição social unívoca. A tarefa parece menos simples quando cada série de discursos deve ser compreendida em sua especificidade, isto é, inscrita em seus lugares e meios de produção e em suas condições de possibilidade, relacionados princípios de regulação que a ordenam e a controlam, e interrogada em seus modos de abonação e de veracidade”( Chartier, 2002, p.77).
O que Chartier propõe nessa reflexão é considerar que os testemunhos, documentos, evidências, registros ou fontes históricas devem ser tomados como textos, compreendidos como representações que nos possibilitam uma leitura das práticas sociais passadas. Rejeita, portanto, que esse conjunto de materiais históricos já contenha por si só um passado contínuo e com coerência interna já dada. O que o autor defende é que as práticas sociais são descontínuas, suas representações ganham uma coerência à luz da interpretação histórica.
A proposta de Chartier é identificada por muitos estudiosos como sendo uma espécie de quarta geração dos Annales, devido aos seus vínculos com as instituições francesas. Todavia, pela sua rejeição àquilo que ele mesmo identificou como a tirania do social, fica difícil estabelecer uma linha direta de descendência entre essas tradições, no que pese suas afinidades teóricas – por exemplo, a admiração em relação aos precursores alemães da história cultural e a inspiração na sociologia de Durkheim.
As diferenças, mais do que as afinidades, levaram aos praticantes dessa história das práticas e representações sociais criarem o termo Nova História Cultural. Essa expressão ganhou notoriedade mundial com a publicação e posterior tradução para várias línguas, dentres elas o português, do livro organizado pela historiadora norte-americana, Lynn Hunt, intitulado Nova História Cultural (1992).
A obra reúne um conjunto de estudiosos dos norte-americanos em torno do debate das propostas de Chartier, tendo sido concebida depois de uma conferência realizada por Chartier na Universidade de Berkeley, em 1987. A introdução escrita por Hunt é um importante balanço das tendências historiográficas que desembocaram na Nova História Cultural. Vale destacar que suas reflexões sobre esse campo são muito mais uma plataforma de observação do passado do que um campo autônomo da história.
Em tempo, Lynn Hunt é professora de história na Universidade da Pensilvânia e especialista em História da Revolução Francesa.
3.2 – Cultura como experiência social.
Para tratarmos da segunda tradição, que se refere à linha do marxismo britânico e a defesa por uma história social que incorpore a cultura como experiência social , vamos trabalhar com o artigo de E.P Thompson: “Folclore, antropologia e história Social” (In: Negro & Silva, 2001, pp.227-267).
Trata-se de um texto publicado em 1977, a partir de uma palestra proferida em 1976, no congresso de história da Índia. Nesse artigo, Thompson trata da aproximação entre as análises da história social e antropologia, aproveitando para discorrer sobre o uso da historicidade nas análises antropológicas e para criticar a visão mecanicista do marxismo que opera a partir de uma visão reducionista entre base e superestrutura.
Dentre os principais tópicos abordados na sua defesa pela dimensão cultural do social, podemos destacar para o nosso estudo os seguintes: o papel da cultura na produção de interpretações históricas - o valor do costume; a relação entre estrutura e processo histórico; o valor da experiência (p.258-259-260-263); e por fim, as três características para abordar a dinâmica da experiência social: congruência; contradição; mudança involuntária (p.262)
O valor dos costumes foi descoberto por Thompson ao deslocar o foco de suas análises da sociedade inglesa do século XVIII para a indiana, pois, explica o historiador:
“mover-se da primeira para a segunda significou-se mover de uma sociedade submetida a um ritmo acelerado de mudança para uma sociedade governada, numa extensão muito maior, pelo costume. Havia práticas agrárias costumeiras, formas costumeiras de iniciação às artes de ofício (aprendizagem), expectativas costumeiras quanto a certos papéis (domésticos ou sociais), modos de trabalho costumeiros e expectativas consuetudinárias, bem como ‘desejos’ ou ‘necessidades’. Ao considerarmos o costume, somos levados a problemas impossíveis de ser apreciados dentro da disciplina da história econômica. Tampouco as prescrições do hábito, que são transmitidas oralmente, podem ser manejadas como uma subseção da história das idéias” (Thompson, 1977, In: Negro & Silva, 2001, p 230)
Na busca de coletar fontes para estudar os costumes, Thompson revela que acabou voltando-se para os escritos e coletânea de fontes levantadas pelos folcloristas. No entanto, esse material impregnado de preconceitos e moralismo revelou-se uma base fundamental para acessar os costumes, se analisados do ponto de vista da antropologia, ou seja, recuperando o sentido que os contemporâneos atribuíam às suas próprias experiências. Essa estratégia foi usada na análise da venda das esposas apresentada na introdução desta aula.
Entretanto, a incorporação da Antropologia por Thompson não é incondicional; há uma clara preocupação, por parte do historiador, em incluir na análise antropológica uma dimensão temporal mais clara, daí a importância da sua reflexão sobre a relação entre estrutura e processo: “Na verdade, há de se encontrar a estrutura na particularidade histórica do ‘conjunto de relações social”, e não em um ritual ou em uma forma particular isolada dessa relação. Na história, novos fenômenos acontecem, e sua organização estrutural diante do conjunto muda à medida que muda a estrutura das sociedades” (Thompson, 1977, In: Negro & Silva, 2001, p 248).
A revisão do conceito de estrutura à luz das dinâmicas das relações sociais leva Thompson a posicionar-se diante da sua disciplina, a História Social de tradição marxista, criticando a determinação em última instância da estrutura econômica para as análises das sociedades históricas. O trecho do artigo onde dialoga com essa tradição é fundamental para compreendermos a sua posição em relação ao papel da cultura na análise histórica de orientação marxista:
“Se recuso tanto a analogia da base e superestrutura quanto a prioridade interpretativa atribuída ao econômico, em que sentido me insiro na tradição marxista? Somente, eu temo, no sentido em que Karl Marx, em si, inseria-se. Pois não há dificuldade em demonstrar quanto as versões reducionistas e economicistas do marxismo estão distantes do pensamento de Marx.
‘Sem produção não há história’, insistiu R. S. Sharma oportunamente. Mas devemos dizer também: ‘sem cultura não há produção’. Dois erros arraigados na tradição marxista foram confundir o tão importante conceito de modo de produção (no qual as relações de produção e seus correspondentes conceitos, normas e formas de poder dever ser tomados como um todo) com uma acepção estreita de ‘econômico’ e o de, identicamente, confundir as instituições, a ideologia e a cultura de uma classe dominante com toda a cultura e ‘moralidade’. Há modos pelos quais sua cultura e instituições podem ser proveitosamente examinadas como ‘superestruturais’, ma esse método de análise se torna muito menos atrativo quando nos voltamos para a cultura, as normas e os rituais do povo sobre quem aquelas classes exerciam seu domínio, pois são comumente tidos como intrínsecos ao modo de produção em si, à reprodução tanto da vida mesma quanto dos meios materiais” (Thompson, 1977, In: Negro & Silva, 2001, p 258-259).
A crítica de Thompson vem da leitura de uma das principais teses de Marx: “o ser social determina a consciência social”. Ser e consciência são tratados através da noção de experiência, como resume o historiador britânico:
“Em poucas palavras, as relações entre o ‘ser social’ e  a ‘consciência social’ seguem agora: em qualquer sociedade cujas relações sociais foram delineadas em termos classistas, há uma organização cognitiva da vida correspondente ao modo de produção e às formações de classe historicamente transcorridas. Esse é o ‘senso comum’ do poder, saturando a vida cotidiana e se expressando – mais ou menos conscientemente – na abrangente cúpula da hegemonia da classe dominante e nas formas de dominação ideológica. O ‘teatro’ do poder é apenas uma forma dessa dominação.
Contudo, no interior e por baixo desse arco, há um sem-número de contextos e situações em que homens e mulheres, ao se confrontar com as necessidades de sua existência, formulam seus próprios valores e criam sua cultura própria, intrínsecos ao seu modo de vida. Nesses contextos, não se pode conceber o ser social à parte da consciência social e das normas. Não há sentido algum em atribuir o prevalecimento de um sobre o outro. Os historiadores podem reconstruir os diferentes modos de vida, seus valores correspondentes, de grupos e ocupações particulares: a ‘independência’ do artesão, os diversos valores comunais do aldeão, do couteiro, da comunidade de tecelões. Em alguns momentos, a cultura e os valores dessas comunidades podem opor-se ao abarcante sistema de dominação e controle” (Thompson, 1977, In: Negro & Silva, 2001, p.260-61).
Thompson conclui sua reflexão da cultura como experiência social historicamente determinada estabelecendo três pressupostos conceituais básicos, as noções de congruência; contradição; mudança involuntária; assim apresentados pelo autor:
“Por congruências, entendo as regras ‘necessárias’, as expectativas e os valores segundo os quais as pessoas vivem relações produtivas particulares. Não se pode passar a vida inteira protestando; é necessário dissimular e lidar com o status quo. Qualquer sistema de produção conforma expectativas segundo a linha da menor resistência, visando a conformidade com suas regras. Por contradição quero dizer , primeiro, o conflito entre o modo de viver e as normas da comunidade local e ocupacional daqueles da sociedade ‘envolvente’. Em segundo lugar, conflito são as maneiras pelas quais o caráter essencialmente explorador das relações produtivas se torna uma experiência vivida, dando origem à manifestação de valores antagonistas e a uma ampla crítica do ‘senso comum’ do poder. Por mudança involuntária me refiro às mudanças ulteriores na tecnologia, demografia e por aí vai (‘a vida material’ segundo Braudel: novas lavouras, novas rotas comerciais, a descoberta de novas reservas de ouro, mudanças na incidência de epidemias, novas invenções mecânicas), cujas involuntárias repercussões afetam o modo de produção em si, perceptivelmente, o equilíbrio das relações produtivas” (Thompson, 1977, In: Negro & Silva, 2001,  p.262).
Vale ressaltar a importante contribuição de Thompson para a revitalização das análises históricas marxistas. A abordagem thompsoniana foi fundamental para a consolidação do estudo da cultura como espaço social de conflito, resistência e disputa, abrindo uma alternativa consistente para a abordagem funcionalista da cultura.
No Brasil, o surgimento de um debate sobre a história cultural data do final dos anos 1980, associados aos estudos sobre Brasil colonial e oitocentista nos programas de pós-graduação em História. Neste sentido, é tributária da reavaliação da historiografia brasileira clássica de viés menos economicista ou político e mais culturalista, dentre os quais destacam-se os já mencionados historiadores Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda.
Vale ressaltar, no processo de consolidação do campo de estudos da História Cultural no Brasil, o papel desempenhado pelo Grupo de Trabalho de História Cultural da ANPUH, que reúne a cada dois anos, desde 2002, em encontros nacionais um número significativo de pesquisadores de diferentes setores das Ciências Humanas. Em tais encontros, evidencia-se o caráter interdisciplinar do campo bem como a variedade de temas e objetos abordados, demonstrando que, no século XXI, a História Cultural no Brasil ampliou seu foco de estudo, incluindo os temas das artes contemporâneas e da indústria cultural.
Resumo.
A história cultural não é uma inovação do século XXI, seus precursores remontam à historiografia alemã do XIX, com destaque para as abordagens de Buckhardt e Huizinga.
Ao longo do século XX, o campo das ralações entre história e cultura foram sendo travados a partir de duas tradições distintas. Uma, de corte mais culturalista, propunha uma história cultural do social, cujo historiador de referência é Roger Chartier.  Outra, de viés marxista, propunha uma história social da cultura, na qual a dimensão cultural da experiência social fosse considerada como parte integrante das relações de produção. Sem produção não há história; sem cultura, não há produção é a frase síntese das reflexões de E. P. Thompson, autor que representa essa tendência.
Por fim, no Brasil dos estudos de História Cultural que ganharam destaque no final dos anos 1980 como os primeiros frutos da pós-graduação, superaram os limites temporais aos quais estavam confinados – Brasil colônia e Império – e ampliaram seu campo de interesses com os estudos sobre as artes e cultura de massas no mundo contemporâneo.
Os conceitos centrais para o estudo da História Cultural são:  representação social/coletiva; experiência; cultura.
Referências.
Chartier, Roger. À Beira da Falésia: história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002, Introdução e 1ª parte
Chartier, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988, Introdução e capítulo 1
Ginzburg, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Pesavento, Sandra J. História e História Cultural, Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2003.
Pesavento, Sandra Jatahy, Weber, Nádia Maria Santos e Rossini, Miriam de Souza. Narrativas, Imagens e Práticas Sociais: percursos em história cultural, Porto Alegre: Editora Asterisco, 2008.
Thompson, E. P. “Folclore, antropologia e história social” (1977), IN: Negro, Sergio & Silva, Antonio Luigi (orgs). E.P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros ensaios, Campinhas: Editora Unicamp, 2001
Vainfas, Ronaldo. “História das Mentalidades e História Cultural”, IN: Cardoso, Ciro & Vainfas, Ronaldo (orgs.) Domínios da História, Rio de Janeiro: Campus, 1997
Sites na Internet
Entrevista de Isabel Lustosa Com Roger Chartier em Trópico.
Textos de Roger Chartier em PDF
Para fazer download da obra “Domínios da História” acesse:

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