sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Aula 7. História da Política e História do Poder: tendências e debates


UFF/CEG/ICHF

Métodos e Técnicas de Pesquisa em História.
Profª.: Ana Maria Mauad.
Aula 7.
História da Política e História do Poder: tendências e debates

META DA AULA
 
Apresentar as principais tendências e debates da história política e da história do poder.



OBJETIVOS 

Após o estudo do conteúdo desta aula, você deverá ser capaz de:
1. Reconhecer  o significado de história política no debate historiográfico do século XX em oposição à perspectiva da história tradicional.
2. Identificar as principais teorias e conceitos da história política
3. Relacionar história política aos estudos sobre o tempo presente.
 
Introdução:
Nas suas origens, a História Política é a história da cidade, quer dizer, no mundo grego onde nasceu, a História do Estado e dos cidadãos que o constituem. Portanto, dentre os seus temas estariam: o funcionamento dos poderes público, das suas mudanças, das suas ações (leis, decretos etc.) e das reações do corpo social ou de qualquer de seus elementos a essas medidas.
Cabia também à História Política o interesse pelas relações, na guerra e na paz, entre a cidade e as forças exteriores que lhe eram comparáveis sob certos aspectos, incluindo-se o conjunto das cidades gregas e os Estados, até mesmo as hordas bárbaras.
Portanto, na origem da historiografia ocidental, a História política definiu a forma do relato dos feitos da cidade e do corpo de cidadãos, considerados em geral como notáveis, como o fio condutor das memórias coletivas.
No século XIX, o princípio clássico é transferido da cidade para a nação, e a história passa a ser a grande narrativa nacional, confundindo-se com a memória dos grandes feitos heróicos do passado.
A cultura histórica oitocentista tinha como princípios a valorização dos marcos cronológicos, que definiram a formação da nação, e os “bravos homens” responsáveis pela sua construção. Essa modalidade de escrita da história e do pensamento sobre a história, juntamente com a consolidação dos limites territoriais e de uma norma culta para uma língua nacional, compartilhada por todos, formaram o tripé simbólico de sustentação dos Estados Nacionais. Assim, a História política passou a ser associada à história tradicional dos eventos e da glorificação dos heróis nacionais, confundindo-se com a História das elites e do poder de Estado.
Contra essa modalidade, tanto os Annales quanto o Marxismo se voltaram, banindo da noção de História social, os “grandes eventos” e a política. Nesta aula, vamos estudar a renovação dos estudos sobre a Política, os principais conceitos associados à história Política e a sua estreita relação com os estudos sobre o tempo presente.
1. História Política: trajetória de renovação.
1.1 O inimigo comum...a história política tradicional
Antes de entramos propriamente na renovação da História Política, vale a pena recuperarmos, em linhas gerais, as motivações de sua rejeição. O historiador Francisco Falcon, no capítulo “História e Poder”, da obra Domínios da História (1997), apresenta a forma como a relação entre História e Política levou à elaboração da noção tradicional de história. Vale acompanhar a argumentação do historiador para compreendermos as motivações propriamente históricas que levaram boa parte dos movimentos historiográficos a partir de 1930 a rejeitá-la.
Falcon remonta aos gregos para demonstrar a associação estreita entre História e poder; entretanto, enfatiza que é nos tempos modernos que a História Política ganha os foros do Estado, com a presença de uma moral e uma ética que se apoiavam no estudo do passado, ou seja, na História como mestra da vida. Esclarece, também, que, de meados do século XVIII ao terceiro quartel do XIX, dois grandes movimentos, a Ilustração e o Romantismo, modificaram a concepção de História, acentuando ainda mais a importância da sua dimensão política.
A historiografia da Ilustração gerou dois tipos de História e de historiadores – a história dos filósofos e a dos eruditos ligados ao movimento dos antiquários. Falcon explica, seguindo a argumentação de Bourdé e Martin (1990), que “Enquanto os filósofos criticavam a natureza meramente descritiva , factual e essencialmente política das histórias eruditas, propunham  como alternativa uma história filosófica – uma história racional e explicativa da totalidade do devir histórico – cujo método seria dado por valores universais expressos através dos conceitos de cultura, civilização e liberdade” (Falcon, 1997, p.64)
Os historiadores eruditos, por sua vez, apesar de não terem alcançado a posteridade, foram fundamentais no aperfeiçoamento do instrumental da crítica das fontes documentais, além de descobrirem acervos e novos materiais, de natureza diversa (não somente escrito, mas também associado à cultura material), à investigação histórica. Apesar de terem criado a base do avanço historiográfico do século XIX, permaneceram sujeitos a duas limitações básicas, uma história eminentemente política por um lado e, por outro, essencialmente regional e local (Falcon, 1997, p.64).
A historiografia perpassada por valores do Romantismo foi a responsável pela valorização dos grandes temas da História do século XIX: a nação e o povo. Ambos associados numa mesma entidade coletiva que se manifestava na língua, na história e na cultura, compartilhado por todo o espírito ou alma nacional. Assim, a História, segundo o Romantismo, seria sempre a história dessas realidades únicas que tinham no Estado sua expressão política, cabendo ao Estado-Nação o lugar de honra no campo da historiografia do Oitocentos (Falcon, 1997, p.65).
A partir de 1870, avalia Falcon, a história romântica foi gradualmente sendo substituída pela história científica, a chamada História Metódica, sem, no entanto, perder o foco na política e nos feitos do Estado:
“A historiografia metódica instituiu, a partir de seus pressupostos cientistas, um tipo de discurso histórico próprio e destinado a demonstrar, através de marcas específicas, as suas diferenças em face do discurso literário. Tratava-se de distinguira verdade histórica da ficção literária a partir da separação de dois tipos de fatos – os verdadeiros, que podem ser comprovados e os falsos, de comprovação impossível. Logo,a história – a história política – é ciência e não arte, consistindo a tarefa do historiador não em evocar ou reviver o passado, como desejavam os românticos, mas sim descrever/narrar os acontecimentos do passado tal como eles realmente se passaram”, frase de Leopold Von Ranke que tornou-se célebre como o princípio da história metódica (Falcon, 1997, p.67).
Ao longo das primeiras décadas do século XX, o prestígio da escola metódica ou positivista se manteve no controle da produção de uma história oficial. Somente a partir do início dos anos 1930 é possível avaliar o declínio da História Política tradicional, caracterizada da seguinte forma pelo historiador francês Jacques Julliard, na clássica coletânea de Pierre Nora e Jacques Le Goff, “Faire l’histoire” (no Brasil, História Novas Abordagens, 1976):
“A história política é psicológica e ignora os condicionamentos; é elitista, talvez biográfica e ignora a sociedade global e as massas que a compõem; é qualitativa e ignora as séries; seu objetivo é o particular e, portanto, ignora a comparação; é narrativa, e ignora a análise; é idealista, e ignora o material; é ideológica, e não tem consciência de sê-lo; é parcial e não o sabe; prende-se ao consciente e ignora o inconsciente; visa aos pontos precisos e ignora o longo prazo; em uma palavra é uma história factual” (Juliard, 1976, p.180)
No entanto, apesar da reiterada rejeição a esse perfil de História, os estudos sobre a dimensão política das sociedades continuou a ser trabalhado, segundo abordagens teóricas diversas, tanto pelos Annales quanto pelo marxismo. Nesse caso, o foco se deslocou do interesse pelo acontecimento político e pelas querelas de Estado para os estudos sobre o poder e as suas lógicas de configuração, bem como sobre a forma como a política se inseria nos estudos sobre longa duração, através da noção de culturas políticas. Esses aspectos serão tratados mais detidamente no item dois desta aula.
1.2 A Nova História Política.
Em seu livro, Pour une histoire politique (Por uma história política), publicado na França em 1988, e no Brasil em 1996, o historiador francês Rene Remond, apresentava na sua introdução um balanço da renovação do campo de estudos da história política.  Segundo Remond, "renascimento da história política" deve ser entendido em ligação com duas ordens de fatores: as transformações sociais mais amplas, que propiciaram o retorno do prestígio ao campo do político, e a própria dinâmica interna da pesquisa histórica.
Verbete
René Remond – Professor da Universidade de Paris X-Nanterre, nascido em 30 de setembro de 1918  e falcido em 14 de abril de 2007. Especialista em História Contemporânea e um dos responsáveis pela renovação da História Política na França.
Fim do verbete
Na primeira ordem de fatores, Remond (1996) apontou um conjunto de fenômenos históricos dentre os quais as crises constantes que desregularam os mecanismos das economias liberais e levaram o Estado a intervir, ampliando seu raio de ação e dando lugar ao desenvolvimento de políticas públicas.  Essa nova configuração apontava para o fato de que as relações entre a economia e a política não tinham um sentido único. Se não havia dúvida de que a pressão dos interesses organizados se refletia na implementação das políticas públicas, a recíproca também era verdadeira: a decisão política podia mudar o curso da economia.
O alargamento da competência do Estado foi assim acompanhado da extensão do domínio da ação política. As fronteiras que delimitavam o campo do político ampliaram-se significativamente, incorporando novas dimensões e abrindo espaço para o surgimento de novos objetos de estudo. A idéia de que o político tinha consistência própria e dispunha de uma certa autonomia em relação a outras instâncias da realidade social ganhava credibilidade (Remond, 1996, pp.21-26).
Na segunda ordem de fatores que levaram à revitalização da história política, Remond apontou os fatores intrínsecos ao campo da historiografia francesa, pós 1968. Segundo a perspectiva de Remond, não há um retorno da História Política, pois isso seria recuperar um tipo de historiográfica completamente ultrapassada; o que se defende é a renovação epistemológica desse campo de estudos, a partir de quatro aspectos centrais: a interdisciplinaridade; a renovação das fontes e da metodologia; a problemática dos sujeitos políticos e, por fim, a questão da temporalidade. Em relação ao primeiro aspecto, Remond ressalta:
“De fato, a renovação da história política foi grandemente estimulada pelo contato com outras ciências sociais e pelas trocas com outras disciplinas. É uma verdade geral a utilidade, para todo o ramo do saber, de abrir-se a outros e acolher contribuições externas, mas o objeto da história política, sendo por sua natureza interdisciplinar, torna isso uma necessidade mais imperativa que em outros casos. É impossível para a história política praticar o isolamento: ciência encruzilhada a pluridisciplinaridade é para ela como o ar que ela precisa para respirar” (Remond, 1996, p.29).
Dentre as disciplinas das Ciências Sociais, cujo contato se revelou mais profícuo, Remond destaca a Ciência Política:
“A ciência política, conjugando seus efeitos com a sociologia, obrigou o historiador a formular perguntas que renovam as perspectivas: assim, as noções de representação ou de consenso, cujo lugar é conhecido na reflexão política contemporânea, quando  aplicadas as experiências mais antigas, lançam uma nova luz sobre os acontecimentos e fenômenos cujo egredo se julgava ter descoberto e cuja significação se acreditava ter esgotado. Assim também o estudo dos partidos políticos e dos grupos de pressão, quando e transpõe os seus ensinamentos para períodos remotos, descobre analogias instrutivas com as facções revolucionárias, os clubes ou as formações parlamentares da monarquia constitucional, mas também particularidades reveladoras da diferença dos tempos e situações que mostram a diversidade das modalidades imaginadas para funções perenes” (Remond, 1996, p. 30).
Além da Ciência Política, os estudos da nova história política ganharam uma dimensão original pelos contatos com a Antropologia, nos estudos sobre cultura política, bem como com disciplinas menos vizinhas à história, dentre as quais a lingüística e a psicanálise.
Em relação à renovação das fontes históricas e da metodologia para o seu tratamento, Remond valoriza o uso das fontes seriadas, associadas aos fenômenos políticos de massa, tais como as eleições e formações de partidos políticos.
Boxe de atenção
É importante destacar que a argumentação de Remond se volta basicamente para os estudos na França dos anos 1980. Portanto, ao debate sobre as fontes e métodos, pode-se acrescentar que os estudos da nova história política não abandonaram a análise qualitativa das fontes, presente nos estudos das correspondências entre políticos, nas biografias críticas, organizada através de documentação pessoal ou, ainda, nos estudos sobre trajetória e campo de possibilidades, desenvolvidos com fontes orais.
Fim do boxe de atenção
Na sequência, Remond discute a problemática do sujeito histórico da Nova História Política. Segundo o autor, durante muito tempo censurou-se a história política por só se interessar pela minorias privilegiadas e esquecer o povo, as multidões e as massas. Crítica essa que não se aplica mais, à medida que não há história mais total do que a participação na vida política. A política, ainda segundo Remond, é uma das mais importantes expressões da identidade coletiva: “um povo se exprime tanto pela sua maneira de conceber, de praticar, de viver a política quanto por sua literatura, seu cinema e sua cozinha. Sua relação com a política revela-o da mesma forma que como seus outros comportamentos políticos” (Remond, 1996, p.33-34).
Por fim, Remond discute a problemática do tempo para  Nova História Política, ressaltando que, mesmo sem perder de vista a utilidade da cronologia, há que se ponderar sobre os ritmos e durações temporais da história política:
“Essa se desenrola simultaneamente em registros desiguais: articula o contínuo e o descontínuo, combina o instante e o extremamente lento. Há sem dúvida um conjunto de fatos que e sucedem num ritmo rápido, e aos quais correspondem efetivamente  datas precisas: golpes de Estado, dias de revolução, mudanças de regime, crises ministeriais, consultas eleitorais, decisões governamentais, adoção de textos legislativos...outros se inscrevem numa duração média, cuja unidade é a década ou mais longevidade dos regimes, período de aplicação de tipos de escrutínio, existência de partidos políticos. Outros ainda têm por unidade de tempo a duração mais longa; se a história das formações políticas fica mais na duração média, em compensação a das ideologias que as inspiram está ligada à longa duração” (Remond, 1996, p. 34).
Dessa forma, os quatro aspectos arrolados por Remond compõem um quadro de renovação historiográfica que se processa em associação à dimensão real das transformações políticas no mundo contemporâneo. Portanto, um elenco de novos temas, dentre os quais os estudos sobre opinião pública, mídia, intelectuais, se associam, nas novas abordagens, aos temas sobre eleições, partidos, idéias políticas etc.
A historiadora especialista em História Política,  Marieta de Morais Ferreira, em seu artigo, “A Nova "Velha História":O Retorno Da História Política”, publicado em 1992, no número 10, da revista Estudos Históricos, ao comentar o fenômeno de renovação da História Política, arrola um conjunto de posições dentro e fora da França, apontando para a ausência de um consenso formalizado em torno da valorização ou não da História Política. A autora esclarece:
A despeito desse movimento de renovação, já em curso há algum tempo, permanece um certo descrédito em relação à história política. Os clichês de que nada de respeitável pode ser feito fora das alamedas reais do social e do econômico continuam a ser repetidos, ignorando-se as mudanças profundas que têm marcado esse campo de trabalho. Em 1988, François Furet chamou a atenção para isto ao reconhecer que, a despeito da reintrodução na história das questões da política, "esta partida ainda não tinha sido ganha", pois a massa da École des Annales, mesmo os historiadores da geração seguinte à sua, continuavam ligados à história social, à história das mentalidades” (Ferreira, 1992, p.4)
Entretanto, no debate de idéias e posições dentro e fora do campo historiográfico francês, Ferreira confirma a presença renovada da historiografia sobre História Política:
Pelas diferentes posições apresentadas, percebe-se a variedade de perspectivas propostas para a renovação da história política. Contudo, um ponto comum pode ser detectado: a convicção de que a política tem uma existência própria e não é uma simples expressão reflexa da ação estrutural das forças econômicas. As palavras de Pierre Laborie expressam bem essa perspectiva: "A história política não pode ser percebida como uma instância enclausurada no sótão de uma casa onde a única porta de entrada é o porão." Pierre Rosanvallon vai mais longe nesta descrição. O político não é uma instância ou um domínio entre outros da realidade. É o lugar onde se articula o social e sua representação, a matriz simbólica na qual a experiência coletiva se enraíza e se reflete por sua vez. Com esta demarcação mais ampla do espaço do político, Rosanvallon abre novas alternativas para o estudo dos fenômenos políticos entendidos enquanto campo de representação do social.” (Ferreira, 1992, p.5)
Verbetes
Pierre Laborie – ex-professor de História Moderna na Universidade de  Toulouse e  diretor de estudos da EHESS, é especialista em opinião púbica durante o  Regime de Vichy.
Pierre Rosanvallon – nascido em 1948, é responsável, desde 2001, pelas cadeiras de História Contemporânea e Política do Colégio de França
Fim dos verbetes
2. História Política: abordagens e principais temas
Já foi trabalhado, na Aula 18, que a História opera com conceitos apropriados das ciências sociais, para explicar as realidades históricas, cujo sentido aparece difuso ou ainda circunscrito aos limites dos pontos de vista de seus contemporâneos. Portanto, os conceitos ou a elaboração de modelos, como chamou atenção Hobsbawm na aula estudada, servem para explicar e interpretar a visão que os contemporâneos possuem da sua própria sociedade. Entretanto, como esclarece Burke (2002):
“Uma objeção aos termos técnicos da teoria social merece ser levada a sério. Um historiador poderia perguntar por que motivo seria necessário oferecer substitutos modernos para os conceitos usados por contemporâneos (pelos ‘atores’, como dizem os teóricos) para entender a sociedade deles. Afinal de contas os contemporâneos conheciam a face interna de sua sociedade. Os habitantes de uma aldeia francesa do século XVII entendiam, sem sombra de dúvida, essa sociedade melhor do que jamais serem capazes de fazê-lo. Não há substituto para o conhecimento local.[...]
A questão, contudo, não é substituir, mas ao contrário, complementar os modelos populares com os modernos. Os contemporâneos não entendem sua sociedade com perfeito. Os historiadores não contemporâneos têm menos as vantagens da compreensão a posteriori e de uma visão mais global. [....] Na realidade, seria difícil, compreender a história francesa, quanto mais a história européia, se tivéssemos de nos restringir as categorias locais[...] os historiadores costumam fazer afirmações genéricas sobre grande áreas (Europa, por exemplo) em períodos específicos. Também fazem comparações. Para tanto, esses profissionais criaram seus próprios conceitos: ‘monarquia absoluta’, ‘feudalismo’, ‘Renascença’, entre outros” (Burke, 2002, p.68-69)
Além disso, é fundamental, evidenciar que os conceitos não são meras ferramentas de tradução de um tempo para outro. A elaboração de conceitos e modelos é regida por pressupostos teóricos que orientam a visão que as ciências sociais elaboram sobre a dinâmica da sociedade.  Nesse sentido, a sua  utilização pelos historiadores deve levar em consideração as condições históricas concretas em que os conceitos são aplicados. Nesse caso, não vale mudar as evidências trazidas pela documentação porque você está defendendo uma posição teórica, e não outra.
Portanto, creio que vale a pena explorar as colocações de Ciro Cardoso (1997) sobre a diferenciação de duas abordagens existentes na história política hoje, como uma forma de avaliar que toda escolha teórica é também uma escolha política, informada pelas questões e desafios  que o presente coloca para a pesquisa sobre o passado.
Cardoso (1997) esclarece que, até a década de 1960, as teorias acerca das sociedades complexas estavam dominadas por duas posições polares: teorias que enfatizavam a integração social, num sentido bem genérico, podiam ser denominadas de funcionalistas; teorias que enfatizavam o conflito social.
2.1) integração social ou funcionalistas:.
No primeiro caso, o ponto de partida é o fato de a sociedade ser vista como uma soma de indivíduos. Cada indivíduo, por sua vez, é um ser limitado, unificado, integrado e transparente a si mesmo: um sujeito de conhecimento e um centro dinâmico de consciência, emoção, ação e juízos. A complexidade, a estratificação social e o Estado teriam surgido das necessidades sociais. Os elementos básicos desta forma de pensar implicam que:
1)     os interesses sociais são compartilhados, mais que opostos;
2)     no sistema social, predominam as vantagens comuns, mais do que o domínio e a exploração de uma minoria sobre uma maioria;
3)     tal sistema se mantém mais pelo consenso do que pela repressão ou coerção;
4)     as sociedades são sistemas integrados que evoluem lentamente, em lugar de mudar através de rupturas descontínuas (revoluções).
A integração social seria, pois, algo útil e legítimo. Se os administradores e outras pessoas de status alto vivem melhor e ficam com parte desproporcionalmente alta da renda social, trata-se de um custo necessário para que sejam possíveis os benefícios da integração social. Em qualquer caso, as disfunções sociais que surgirem deverão ser corrigidas, reformadas; a sociedade, tal como existe, deve ser preservada através de reformas pontuais, parciais pois ela é um dado impossível de mudar completamente num período curto. ‘O que existe é necessário e por isso existe’. Entre os adeptos desta posição geral, houve grande variedade de posturas e teorias; o único comum é uma espécie de filosofia global da política e da sociedade. Entre os mais notáveis proponentes de teorias temos Max Weber, Émile Durkheim, Talcott Parsons.
2.2) teorias que enfatizam o conflito social
No segundo caso - as teorias que enfatizam o conflito, a luta de classes -, o Estado teria surgido em função do aparecimento de interesses divididos na sociedade que se tornava complexa e estaria baseado na dominação, na exploração, na coerção. Mais especificamente, as instituições governamentais de tipo estatal, fundamentadas no monopólio da força armada, na organização territorial, na cobrança de impostos, surgiram como mecanismos coercitivos e repressivos para resolver, em favor da posição privilegiada da classe dominante, os conflitos entre os grupos sociais, que emergiam por causa da estratificação econômica (proprietários/não proprietários dos meios de produção mais importantes) e social. A classe dominante, para existir e manter-se como tal, explora e degrada as massas, a maioria da população.
Neste caso, com frequência, o sujeito social é visto como sujeito transindividual, coletivo: classes sociais, não indivíduos. Também aqui, podem existir consideráveis variações, apesar de uma teoria geral similar. Entre os proponentes de peso estariam Karl Marx, Frederich Engels, Antônio Gramsci, entre outros.
Salienta-se, nesta posição, o caráter histórico, instável, transitório das sociedades, mais do que seu aspecto de equilíbrio e integração; e se acredita na possibilidade de sua transformação radical e revolucionária num período relativamente curto.
Verbetes
Talcott Parsons (1902-1979)- Sociólogo norte-americano, professor de Havard e represente mais reconhecido da corrente funcionalista dos EUA.
Antônio Gramsci  (1891-1937) – político e filósofo italiano. Foi uma das referências essenciais do pensamento de esquerda no século XX, co-fundador do Partido Comunista Italiano e um dos principais teóricos sobre temas da História Política de viés marxista, tais como Estado, partidos políticos, ideologia, sociedade civil, sociedade política etc.
Fim dos verbetes
2.3) Alguns temas em história política
Os conceitos utilizados em História Política são muitos e não cabe aqui fazer uma lista, sem que necessariamente se aprofunde seus significados. Vale, porém, ressaltar dois temas trabalhados pela historiografia mais recente e que tem como marca o diálogo entre a linhas de pesquisa em História. O primeiro é o de cultura política e o segundo associa-se ao estudo das identidades sociais e da relação que os indivíduos estabelecem com os grupos sociais. Esse tema engloba três conceitos centrais, a saber: trajetória, projeto e campo de possibilidades (Velho, 1999).
Não incluímos o conceito de poder entre os temas pesquisados, pois ele perpassa a construção que atualmente o campo historiográfico da nova história política opera. Portanto, é importante dominarmos uma definição básica para esse conceito.
O “Dicionário de conceitos históricos” (2006), para definir o termo política, associa-o primeiramente ao conceito de poder:“A palavra ‘política’ não pode ser entendida separada da idéia de ‘poder’. O poder, por usa vez, às vezes é confundido com o Estado, instituição reguladora da vida em sociedade” (p.335). Entretanto, é importante evidenciar que o poder não é unicamente o Estado, pois está disseminado por toda a sociedade. 
Estudiosos da política definem poder como uma relação. Para Max Weber, o poder é uma relação assimétrica entre pelo menos dois atores, quando o primeiro tem a capacidade de forçar o segundo a fazer algo que este não faria voluntariamente e que só o faz conforme as sugestões e determinações do primeiro. A relação de poder, todavia, não gera necessariamente conflito, podendo haver negociação entre as partes.
Essas relações de poder disseminam-se por todas as partes do corpo social, caracterizando aquilo que Michel Foucault denominou em sua obra de “A Microfísica do poder” (4ª Ed, 1984). Segundo esse filósofo, as relações de poder se constroem segundo discursos legitimadores de posições sociais definidas historicamente. Assim, há relação de poder entre pais e filhos, alunos e professores, governantes e governados, dirigentes de partidos e seus filiados, patrões e empregados, líderes de associações sindicais e seus membros, e assim por diante. A verdade é que tais relações são, no mais das vezes, sutis, móveis, dispersas e de difícil caracterização. O poder que, historicamente, o mundo masculino exerce sobre as mulheres é algo tão arraigado na consciência das pessoas, tanto de homens quanto de mulheres, que passa despercebido na maioria das vezes.
Apenas nas últimas décadas do século XX, os diferentes grupos sociais passaram a considerar as demais desigualdades históricas, construídas na dimensão cotidiana, associadas ao corpo, à sexualidade, à reprodução, ao trabalho etc. Assim, os estudos sobre política e poder passaram a considerar  que as desigualdades de gênero, de geração, classe e etnia que se manifestavam no presente são também categorias históricas. Multiplicaram-se, assim, os estudos sobre a participação feminina nas lutas sociais, a questão da juventude e do movimento estudantil, a problemática a resistência escrava etc, como temas transversais à história política e cultural.
Verbete
Michel Foucault (1926-1984) – filósofo francês e professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France de 1970 a 1984. Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções modernas desses termos, motivo pelo qual é considerado por certos autores, contrariando a própria opinião de si mesmo, um pós-moderno. Seu  principalmente do tema é o poder, compreendido como uma relação de forças que não somente reprime, mas também produz efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades. Também abriu novos campos no estudo da história e da epistemologia
Fim do Verbete
A discussão sobre cultura política, em geral, envolve os comportamentos coletivos definidos tanto pela sua adesão a tradições políticas de longa duração, envolvendo rituais e formas simbólicas de relacionamento com o poder político, bem como às expressões materiais que esses comportamentos assumem através de símbolos, rituais, comportamentos eleitorais e práticas de resistência.
Segundo o “Dicionário de Política” (1992), organizado pelos filósofos italianos Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Paquino, cultura política é definida da seguinte forma:
“Ao refletirem sobre as características de sociedades diversas e pensadores de todos os tempos, têm com freqüência acentuado não só a multiplicidade de práticas e instituições  políticas existentes, como também as crenças, os ideais, as normas e as tradições que dão um peculiar colorido e significação a vida política em determinados contextos [...] vindo a difundir-se paralelamente o uso da expressão cultura política, para designar o conjunto de atitudes, normas, crenças, mais ou menos largamente partilhadas pelos membros de uma determinada unidade social e tendo como objeto fenômenos políticos. [...] Compõem a cultura política de uma certa sociedade os conhecimentos, ou melhor, sua distribuição entre os indivíduos que a integram, relativos às instituições, à prática política, às forças políticas operantes num determinado contexto; as tendências mais ou menos difusas, como por exemplo, indiferença, o cinismo, a rigidez, o dogmatismo, ou, ao invés, o sentido de confiança, a adesão, a tolerância para com as forças políticas diversas da própria, etc; finalmente, as normas, como, por exemplo, o direito-dever dos cidadãos a participar da vida política, a obrigação de aceitar as decisões da maioria, a exclusão ou não do recurso as formas violentas de ação. Não se decuram, por último a linguagem e os símbolos especificamente políticos, como as bandeiras, as contra-senhas das várias forças políticas, como as palavras de ordem” (Bobbio et al., 1992, p.306)
Dentro do verbete sobre cultura política, ainda é possível identificar três tipos de cultura política apontado pelos autores: a cultura política paroquial, associada a comunidades mais simples, nas quais o mundo da política coincide com a religião ou a economia; a cultura política de ‘sujeição’, associada às sociedades burocratizadas com o campo político totalmente dependente do Estado, caso típico dos regimes autoritários; por fim um terceiro tipo, a chamada ‘cultura de participação’, relacionada às sociedades onde o campo político é perpassado por tendências variadas e a institucionalidade da política se faz também fora do Estado, no âmbito das esferas sociais mais amplas, como movimentos sociais, sindicatos, associações civis variadas. É a cultura política própria dos regimes democráticos e participativos.
As culturas políticas não são homogêneas,  pois se referem a práticas políticas de  grupos sociais variados que concorrem na dinâmica social. Além disso, é perpassada pela diferenciações entre os grupos sociais dominantes e dominados, como explicam os autores:
“Outra distinção importante é a da cultura política das elites e da cultura política das massas. Do ponto de vista da interpretação dos acontecimentos políticos, a análise da cultura política de elites no poder e de elites na oposição tem uma importância absolutamente desproporcionada à sua força numérica. Basta pensar no papel das elites na definição dos temas do debate político, em conduzir nesta ou naquela direção a opinião pública e, sobretudo, em tomar decisões de grande importância para a estruturação do sistema, como por exemplo, na formação de coalizões e, mais ainda, nas fases de reestruturação do sistema, [...] como ocorre nos momentos de passagem de um regime para o outro, antes que as novas instituições e novos grupos se consolidem” (Bobbio et al., 1992, p.307-308)
Dessa forma, temas como participação popular, repressão nas ditadura, eleições, indústria cultural, entre outros, podem ser abordados pelo viés dos estudos sobre as culturas políticas.
Já o  conceito de identidade, tomado de empréstimo da Antropologia, permite aos estudos de História política caracterizar a relação entre os indivíduos e o grupo social, ao qual derivam e compõem, junto com o conceito de cultura política, uma das principais ferramentas para o estudo dos movimentos sociais contemporâneos e para o papel político que certos agentes sociais assumem na História. Neste caso, os indivíduos retornam à problemática histórica, não mais pela via do heroísmo, mas pela avaliação de suas ações e comportamentos numa perspectiva transindividual.
O antropólogo brasileiro Gilberto Velho, em seu livro Projeto e Metamorfose: Antropologia das Sociedades complexas (1999), estuda a relação entre identidade e diferença nas sociedades contemporâneas. Para o antropólogo:
“Uma das questões mais interessantes e polêmicas é verificar até que ponto a participação em um estilo de vida e em uma visão de mundo, com algum grau de especificidade implica uma adesão que seja significativa para a demarcação de fronteiras e elaboração de identidades sociais. É evidente que existe uma básica diferença entre uma identidade, socialmente dada, seja étnica, familiar, etc. e uma adquirida em função de uma trajetória com opções e escolhas mais ou menos dramáticas. A multiplicidade de referências, seja em termos de grupos ou de atitudes, às vezes aparentemente contraditórias, leva à problemática da fragmentação, para alguns autores, um dos indícios da modernidade. Se, por um lado, as ideologias individualistas marcam o advento do indivíduo-sujeito, por outro lado expressam a fragmentação de domínios que sucede a uma ordem tradicional hipoteticamente mais integrada(Velho, 1999, p.97)
Assim, Velho indica que toda trajetória individual, quer seja a de um político bem-sucedido ou a de um operário sem qualquer liderança sindical,  deve ser avaliada dentro de um campo de possibilidades e de acordo com um projeto.
A definição de projeto é apresentada por Velho segundo os princípios da antropologia de Albert Schutz:
“Projeto, nos termos desse autor (A. Schutz), é a conduta organizada para atingir finalidades específicas. Para lidar com o possível viés racionalista, com ênfase na consciência individual, auxilia-nos a noção de campo de possibilidades como dimensão sociocultural, espaço a formulação e implementação de projetos. Assim, evitando um voluntarismo individualista agonístico ou determinismo sociocultural rígido, as noções de projeto e campo de possibilidades podem ajudar a análise de trajetórias e biografias enquanto expressão de um quadro sócio-histórico, sem esvaziá-las arbitrariamente de suas peculiaridades e singularidades. [...] Um projeto coletivo não é vivido de modo totalmente homogêneo pelos indivíduos que o compartilham. Existem diferenças de interpretação devido as particularidades de  status, trajetória e, no caso da família, de gênero e geração” (Velho, 1999, p.40-41)
As marcas individuais se inscrevem em escolhas informadas coletivamente, dentro de um campo de escolhas e limitações, caracterizando que a sociedade pode ser pensada dentro de um modelo que teoria do conflito, mas que leve em conta a ação de indivíduos e suas aspirações:
“Os projetos individuais sempre interagem com outros dentro de um campo de possibilidades. Não operam num vácuo, mas sim a partir de premissas e paradigmas culturais compartilhados por universos específicos. Por isso mesmo, são complexos e os indivíduos, em princípio, podem ser portadores de projetos diferentes e até contraditórios. Suas pertinência e relevância serão definidas contextualmente [...]Mas efetivamente esse mencionado jogo de papéis se realiza acompanhando a emergência de um projeto pessoal de alguma singularidade” (Velho 1999, p.46)
Dessa maneira, é possível localizar nos sujeitos sociais um nível de consciência a compreensão da sua experiência social, identificando a capacidade dos agentes políticos em serem também sujeitos ativos na transformação histórica:
“As trajetórias dos indivíduos ganham consistência a partir do delineamento mais ou menos elaborado de projetos com objetivos específicos. A viabilidade de suas realizações vai depender do jogo e interação com outros projetos individuais ou coletivos, da natureza e da dinâmica do campo de possibilidades. [...] Os projetos, como as pessoas, mudam. Ou as pessoas mudam através de seus projetos. A transformação individual se dá ao longo do tempo contextualmente. A heterogeneidade, a globalização e a fragmentação da sociedade moderna introduzem novas dimensões que põem em xeque todas as concepções de identidade social e consistência existencial, em termos amplos” (Velho 1999, p.47-48).
Os estudos de Gilberto Velho sobre as sociedades complexas na contemporaneidade são fundamentais para a compreensão das lógicas de formação do campo político, dos movimentos sociais, bem como das políticas de identidade vigentes no mundo de hoje. Temas importantes para uma nova História política que considere as dimensões do tempo presente, como veremos no terceiro tópico desta aula.
3. História política e História do tempo presente.
Ao longo dos anos 1970, como vimos em aulas anteriores, houve uma renovação importante no campo dos estudos históricos, com  abertura para novos temas, novas abordagens e novos problemas. Nesse período e nos  anos subsequentes, alguns temas que haviam sido considerados pouco importantes são reconsiderados pela oficina da história. Esse movimento é identificado como a “onda dos retornos”: o retorno da história contemporânea, o retorno do fato, o retorno do político, o retorno da narrativa etc.
O que de fato se assiste é à emergência de uma crescente preocupação com o estudo do passado próximo e do imediato. Associam-se noções até então pouco comuns, como História e imediato e história e presente, em busca da constituição de um campo de estudos mais formalizado.
Nesse processo, o estudo do político ou, como querem alguns, o retorno do político, teve e ainda tem um papel fundamental. Entretanto, as análises sobre o presente e sobre o imediato não podem se limitar a somente um aspecto, apesar de ser este o seu agente dinamizador.
A história do presente e do imediato é tributária de dois outros fatores: o impacto da geração e o fenômeno concomitante de demanda social. História do presente como um fenômeno de geração que, na França, está associada aos intelectuais que passaram pela crise da Argélia e pelo impacto dos acontecimentos do último século e pela vontade de “reagir”, isto é, de tentar uma explicação para o presente. Nesse processo, se destaca a participação de historiadores ligados à história política na imprensa, apresentando análises mais apuradas sobre o presente.
Do ponto de vista metodológico, a História não é somente o estudo do passado; com menor recuo e métodos particulares, pode ser também o estudo do presente. Neste sentido, uma epistemologia da história do presente consiste em interrogar a história, a fim de propor novos dados que aumentarão sua capacidade de explicação e de sugestão. Pôr em questão a história do presente não é, antes de tudo, louvar sua capacidade explicativa. Não é defender e ilustrar uma nova maneira de história; é, ao contrário, observá-la, pô-la em dúvida para melhor assegurar-se de sua validade, de sua capacidade heurística (Chauveau e Tétard, 1999, cap.1).
O historiador medievalista Jacques Le Goff (IN Chauveau e Tétard, 1999), vai ser indagado sobre a possibilidade de os historiadores se debruçarem sobre a análise do presente, lança questões importantes para a discussão sobre a História do Tempo presente, ressaltando, em suas considerações,  três grandes diferenças entre a história imediata e a dos períodos anteriores, destacando sua dificuldade:
  1. Por causa das fontes e da documentação;
  2. Subjetividade;
  3. Ignorância do futuro.
Defende a possibilidade de uma história imediata que cumpra com os seguintes requisitos;
    1. Ler o presente, o acontecimento, com uma profundidade  histórica suficiente e pertinente;
    2. Manifestar, quanto às suas fontes, o espírito crítico de todos os historiadores, segundo os métodos adaptados às suas fontes.
    3. Não contentar-se em descrever e contar; esforçar-se por explicar;
    4. Tentar hierarquizar os fatos, distinguir o incidente do fato significativo e importante, fazer do acontecimento aquilo que permitirá aos historiadores do passado  reconhcê-lo como outro, mas também integrá-lo numa longa duração e numa problemática  na qual os historiadores do ontem  e de hoje, de outrora e do imediato, se reúnam.
Associados a esses princípios, o historiador francês B. Paillard, no verbete História Imediata, do Dicionário das Ciências Históricas (1993) complementa destacando as noções-chave que devem nortear o estudo de tempo presente, balizado por uma atitude epistemológica aberta:
1ª Abordagem transdisciplinar  dos fenômenos sociais: revelador de uma realidade complexa e multiderteminada;
2ª Considerar o retorno do acontecimento a partir de uma discussão substantiva sobre a temporalidade social. O acontecimento como um indício, como a expressão de uma dinâmica mais profunda;
3ª Propor uma reflexão sobre a incerteza  e sobre o porvir humano;
4ª Avaliar a subjetividade inerente aos estudos do presente e conceber sua pesquisa como um processo de objetivação.
Por fim, mas não menos importante, a historiadora Ângela de Castro Gomes, em artigo intitulado “POLÍTICA: história, ciência, cultura etc.”, publicado na revista Estudos Históricos (1996), orienta o estudo para uma história política do tempo presente.
“Não se tem aqui a menor pretensão de conduzir uma reflexão sobre este tema, que vem sendo debatido sistematicamente por historiadores e cientistas sociais, mas apenas correlacionar tal transformação mais geral com uma re-significação da história política que trouxe consigo algumas orientações inovadoras e fundamentais:
a) a de que a história política não só não é redutível a um reflexo superestrutural de um determinante qualquer de outra natureza (seja econômico ou não), como goza de autonomia ampla, sendo espaço iluminador e influenciador da dinâmica global da realidade social; por outro lado, a de que a história política não reclama para si atributos especiais, numa inversão do que é próprio dos paradigmas estruturalistas; b) a de que a história política deve ser pensada como um campo mutável através do tempo e do espaço, podendo expandir-se ou contrair-se, incorporando ou eliminando temas, o que se relaciona fortemente com as histórias nacionais de vários Estados; c) a de que a história política tem, de forma intensa e constitutiva, fronteiras fluidas com outros campos da realidade social, especialmente com as questões culturais, na medida em que as interpretações políticas abarcam tanto fenômenos sociais conjunturais - mais centrados em eventos - quanto fenômenos sociais de mais longa duração - como a conformação de uma mentalidade ou "cultura política" de um grupo maior ou menor; d) a de que a história política privilegia, sem sombra de dúvida, o "acontecimento" (político tout court ou não), que não pode ser superestimado nem banalizado, mas sim investido de um valor "próprio" que lhe é em grande parte atribuído/vivenciado pelos seus contemporâneos; tal valor deve ser resgatado pelo analista, numa dialética entre memória-história cada vez mais considerada e praticada nos estudos político-culturais; e) a de que a história política sofre, de forma ainda mais radical, uma demanda social pela "incorporação" do tempo presente, embora a "nova" história política não se esgote nem se realize mais plenamente neste território contemporâneo e, portanto, ainda mais marcado pela convivência com a produção dos cientistas sociais, políticos em destaque; f) a de que a história política também sofre o impacto da absorção de novos objetos e metodologias - a história oral, por exemplo -, mais ainda quando associada à história cultural, o que também a aproxima particularmente dos trabalhos dos cientistas sociais, políticos em especial.” (Gomes, 1996,p.6)
Para concluir, portanto, podemos, seguindo as  considerações de Jacques Julliard, distinguir  vários tipos de história política que organizam esse campo histográfico hoje.
1.      História política como história narrativa - ligada à análise dos acontecimentos do mundo da política, bem como à trajetória de personagens relacionados aos movimentos sociais, ou ainda a processos de transformação social pela atividade política.
2.      História política como sistema explicativo - neste caso, a política proporciona as principais hipóteses da explicação que se constrói - ligadas a uma história das elites, centradas na história das ideologias por uma insistência em motivações psicológicas.
3.      História política vista como sociologia histórica do poder, na linha, por exemplo, das análises weberianas e seus tipos ideais: poder carismático, burocracia. Como também a estrutura do poder, as estratégias na perspectiva da teoria da decisão, linguagem do poder, tornam-se mais importantes do que o estudo dos seus efeitos, tais como toma corpo nas ocorrências políticas específicas.
4.      História política na longa duração. Tratar-se-ia, no fundo, de uma história da cultura política em vinculação com o sistema de crenças e mais preocupada com as persistências do que com as mudanças.
Resumo.
A história política renovada pelos contatos com as Ciências Sociais, ao longo do século XX, diferencia-se da história tradicional do século XIX, por incorporar conceitos e superar o relato dos acontecimentos.
A renovação historiográfica da História Política associa-se à consideração de novos conceitos e temas, dentre os quais: poder e cultura política.
Considera-se como parte importante da análise da história política a relação entre sujeito individual e coletivo, segundo conceitos operacionais tomados de empréstimo da Antropologia, dentre os quais se destacam: trajetória, projeto e campo de possibilidades.
Na “onda dos retornos”, a renovação da História política esteve associada à revitalização dos estudos sobre História Contemporânea, com ênfase na dimensão imediata ou, como ficou conhecida desde os anos 1990, a História do tempo presente.
Informações sobre a proxima aula.
Na próxima aula, estudaremos o campo historiográfico da história cultural, sua trajetória e principais conceitos.
Referências.
Bourdé & Martin. As escolas históricas, Lisboa, Europa-américa, 1990.
Burguière, André (org.) Dicionário das Ciências Históricas, Rio de Janeiro: Imago, 1993
Cardoso,  Ciro Flamarion.  “Epistemologia pós-moderna, texto e conhecimento: a visão de um historiador, IN: http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol03_mesa1.htm
Cardoso. Ciro F.S., “História do poder, história política”. In: Estudos Ibero-Americanos. VXXIII, n. 1. Porto Alegre:. PUCRS, julho, 1997, p. 123-141
Chauveau, A. & Tétard, Ph. (orgs.) Questões para a História do tempo presente, Bauru, SP: Edusc, 1999.
Falcon, Francisco. “ História e Poder”, In: IN: Cardoso, Ciro & Vainfas, Ronaldo (orgs.) Domínios da História, Rio de Janeiro: Campus, 1997
Ferreira, Marieta de Morais. A nova "velha história": o retorno da história política, In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n . 10, 1992
Foucault, Michel. A Microfísica do Poder, São Paulo: Graal, 4ª Ed. 1984.
Gomes, Ângela de Castro. “Política: história, ciência, cultura etc.”, In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 17, 1996
Julliard, Jacques. “Política”, In: Le goff, J. & Nora, P. História novas abordagens, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
Remond, Rene. Por uma história política, Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora FGV, 1996
Silva, Kalina & Silva, Maciel. Dicionário de conceitos históricos, São Paulo: Editora Contexto, 2006.
Sirinelli, Jean-François. “A geração”, IN: Ferreira, Marieta & Amado, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Ed., 1996, pp. 131-138
Velho, Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das Sociedades complexas, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2ª edição, 1999
Sites na Internet
Estudos Históricos n.17, 1996.
Instituto de História do Tempo Presente (em francês)
Museu de História Contemporânea (em francês)

Nenhum comentário:

Postar um comentário