sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Aula 2. História, ficção e narrativa


UFF/CEG/ICHF

Métodos e Técnicas de Pesquisa em História.
Profª.: Ana Maria Mauad.
Aula 2.
História, ficção e narrativa
META DA AULA
Nesta aula, vamos abordar o aspecto da discussão do estatuto da história como forma de conhecimento, no que diz respeito a sua relação com a ficção e com a narrativa.
OBJETIVOS
Após o estudo do conteúdo desta aula, você deverá ser  capaz de:
1.       Caracterizar as relações entre história e ficção;
2.       Identificar as relações entre a escrita da história acadêmica e as evidências do passado;
3.       Caracterizar o papel da narrativa na produção da história.
Introdução:
Você já teve a chance de ver o filme Narradores de Javé (Eliane Caffé, 2004)? Ele conta a história de um povoado denominado Javé, ameaçado de sumir do mapa devido à construção de uma represa. Os moradores do povoado, inconformados com o destino da terra de seus ancestrais, descobrem que a única forma de barrar a construção da represa era o tombamento da cidade como patrimônio histórico. Entretanto, para isso, era necessário que os moradores comprovassem que a localidade tinha uma importância histórica, ou ainda nas palavras de um dos personagens centrais da trama, Zaqueu: “história grande, com documentos e provas”. Portanto, necessitavam de uma grande narrativa que justificasse a importância daquele povoado, não somente para os seus moradores, mas para toda a História do Brasil. A solução para o problema foi contratar o único morador da cidade que sabia ler e escrever, Antônio Biá. Biá era um ex-funcionário dos Correios que havia sido banido da cidade, pois, para não perder seu emprego com o fechamento da agência na qual trabalhava, por falta de movimento (já que a população analfabeta não escrevia cartas) saiu escrevendo cartas com nomes dos moradores e histórias inventadas e mandou para os povoados vizinhos. Sua estratégia foi descoberta e os moradores o expulsaram da cidade, mas como agora precisavam dele para escrever a história da cidade, foram buscá-lo em comitiva.
O problema é que o povoado não tinha arquivos, com registros históricos que pudessem ser levantados. A alternativa do historiador oficial foi entrevistar os moradores mais ilustres. Entretanto, como todos se consideravam ilustres, a briga foi grande, marcada por disputas entre as diferentes versões em relação à “verdadeira história de Javé”.
O filme é uma boa metáfora sobre a relação entre memória e história e sobre a busca da verdade do passado. Nas várias versões sobre a fundação de Javé, como a do nobre português Indaleu, a da mulher  que o acompanhava, Maria Bina, e a da população afro-descendente local, que cria um mito fundador em torno de uma entidade chamada Indalaô, fica evidente que a grande narrativa histórica é produzida sempre em relação a um sujeito histórico. As reconfigurações do passado realizadas por cada narrativa não negava, no entanto, o fato de que num determinado momento da história o povoado foi fundado. Afinal de contas, o sino da cidade, uma verdadeira relíquia do passado, estava lá para provar. Testemunhos, vestígios, arquivos, evidências apóiam a interpretação do passado, mas só se tornam História se perguntas forem feitas e problemas levantados para encaminhar uma pesquisa e produzir uma explicação.
Assim, para pensarmos a relação entre a história acadêmica, produzida dentro das exigências do campo de produção do conhecimento histórico, e as demais formas de narrar o passado, devemos considerar que o passado não está pronto e se alimenta também da imaginação histórica dos sujeitos que a produzem. Nesta aula, vamos estudar as relações entre história e ficção tomando como apoio a noção de narrativa evidenciando as diferentes formas de representar o passado.
Boxe multimídia


Ficha Técnica

Título Original: Narradores de Javé
Gênero: Comédia
Duração: 100 min.
Lançamento (Brasil): 2003
Distribuição: Lumière e Riofilme
Direção: Eliane Caffé
Roteiro: Luiz Alberto de Abreu e Eliane Caffé
Produção: Vânia Catani e Bananeira Filmes
Co-Produção: Gullane Filmes e Laterit Productions
Música: DJ Dolores e Orquestra Santa Massa
Som: Romeu Quinto
Fotografia: Hugo Kovensky
Direção de arte: Carla Caffé
Figurinista: Cris Camargo
Letreiros: Carla Caffé e Rafael Terpins
Edição: Daniel Rezende

 

Elenco

José Dumont (Antonio Biá)
Matheus Nachtergaele (Souza)
Nélson Dantas (Vicentino)
Rui Resende
Gero Camilo (Firmino)
Luci Pereira
Nelson Xavier (Zaqueu)
Jorge Humberto e Santos
Altair Lima (Galdério)
Alessandro Azevedo (Daniel)
Henrique (Cirilo)
Maurício Tizumba (Samuel)
Orlando Vieira (Gêmeo)
Roger Avanzi (Outro)

Fim do Boxe multimídia
1. História e Ficção: entre a invenção e a construção do passado.
Há cerca de três décadas, o uso da palavra invenção nos trabalhos de Ciências Sociais vem crescendo. Disseminam-se textos, cuja lista é bem longa, nos quais a palavra invenção assumiu o caráter de criação, inauguração, ruptura, e, ainda momento inaugural.
Essa tendência é associada pelo historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior a mudanças significativas na prática historiográfica contemporânea:
O uso dessa expressão parece indicar mudanças paradigmáticas no campo da produção do conhecimento e das concepções filosóficas que a embasam. [...] ao usar a palavra invenção, os autores estão enfatizando a dimensão genética das práticas humanas, independentemente do que consideram ser as ações determinantes ou fundantes da sua realidade ou de suas representações. Os homens inventariam a História através de suas ações e de suas representações. Essa expressão remete a temporalização dos eventos, dos objetos e dos sujeitos, podendo se referir tanto à busca de um dado momento de fundação ou de origem, como a um momento de emergência, fabricação ou instituição de algo que surge como novo. O termo invenção, portanto, também remete a uma dada ruptura, a uma dada cesura ou a um momento inaugural de alguma prática, de algum costume, de alguma concepção, de algum evento humano. (Albuquerque Jr., 2007, p.19)
No campo dos estudos históricos, o uso da palavra invenção sugere também um deslocamento importante para a valorização dos aspectos de representação do passado e dos usos de tais representações na dinâmica histórica. Dentre os trabalhos mais famosos no campo dos estudos históricos, cujo título alude a essa noção, está  a coletânea editada pelos historiadores Eric Hobsbawn e Terence Ranger, “Invenção das tradições”, publicada no Brasil, em 1997, pela editora Paz e Terra.
Nessa coletânea de ensaios, os autores refletem sobre a complexa interação entre passado e presente através dos “usos do passado”, mais particularmente, o uso da historiografia, pelas sociedades históricas, com efeito justificador e ideológico. Assim, esse estudo revela como os nacionalismos contemporâneos inventam discursos legitimadores apropriando-se das tradições e relatos passados.
Boxe explicativo
Durval Muniz de Albuquerque Junior -  Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual da Paraíba (1982), mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1988) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1994). Atualmente é colaborador da Universidade Federal de Pernambuco, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria e Filosofia da História, atuando principalmente nos seguintes temas: gênero, nordeste, masculinidade, identidade, cultura, biografia histórica e produção de subjetividade”.
(Texto retirado do Currículo Lattes, plataforma CNPq informado pelo autor - http://lattes.cnpq.br/7585947992338412)
Eric Hobsbawn – Reconhecido historiador marxista, nasceu em 1917 em Alexandria no Egito, e fez seus estudos em Viena, Berlim, Londres e Cambridge. Fundou, em  1952, juntamente com Edward P. Thompson e Christopher Hill, a revista inglesa “Past and Present”, responsável por inaugurar uma nova tendência na história social de enfoque marxista, incorporando no debate sobre as formações sociais aspectos da cultura e da política. Para Afonso Marques dos Santos, “Eric Hobsbawm é provavelmente o historiador de língua inglesa mais traduzido e publicado no Brasil. Seus livros, notáveis pela abrangência temática e pela qualidade da síntese, foram se tornando, desde a década de 70, leituras obrigatórias nos cursos brasileiros de História. (Historiador de formação marxista, tendo estudado em grandes universidades européias,) sua obra procurou compreender a História Contemporânea através de momentos chaves, assinalados por tensões e conflitos sociais e que resultaram em revoluções e guerras. Sua escrita da História foi dirigida, na maioria das vezes, não para um fechado circuito de especialistas, mas para um público de leitores cultos, para aqueles que desejam saber como e por que o mundo chegou a ser o que é hoje e para onde caminha” (http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0017.htm, acessado em 07/01/2009) 
Terence Ranger – Nasceu em 1929 e realizou  todos os seus estudos na Universidade de Oxford. Em 1957, ingressa na University College of Rhodesia (mais tarde Zimbabwe) como professor de História Medieval e Moderna. Desde cedo se envolveu com a luta pelos direitos humanos integrando uma importante corrente de historiadores pós-colonais. Depois da sua deportação da Rodesia em 1963, atuou em diferentes centros universitários na Inglaterra e nos Estados Unidos. (http://cas1.elis.rug.ac.be/avrug/ranger.htm, acessado em 07/01/2009)
Fim do boxe explicativo
Entretanto, o uso do termo invenção no campo dos estudos históricos não é consensual e sugere debates e tomadas de posição. Albuquerque Jr. explica que o termo invenção, em História, se opõe a outro – o de formação. Tal oposição revela um deslocamento importante no campo da historiografia brasileiro: desloca-se de uma postura onde predominava, entre os anos 1930-1950, a busca das “raízes”, das bases, das determinações, do sentido e dos elementos formadores do que se supunha ser a “cultura brasileira” e a “historia brasileira”, para uma tendência que valoriza uma abordagem do evento histórico em que a ênfase está na descontinuidade, na ruptura, na diferença, na singularidade. Essa tendência afirma também o caráter subjetivo da produção histórica.
Esse deslocamento de posições predominantes no campo da historiografia brasileira é atribuído por Albuquerque à influência da virada lingüística dos anos 1970 e à aproximação da história das demais disciplinas das ciências sociais, dentre as quais: antropologia, etnografia, psicanálise e lingüística.
No novo posicionamento historiográfico em relação ao passado, estava embutida uma forte crítica à universalidade do homem, da razão ocidental, da racionalidade do sujeito, tanto como agente da história, quanto sujeito do conhecimento – o historiador. A politização da história não passaria mais pela luta de classes, mas pela política das identidades e pela defesa das diferenças. Temas caros a uma historiografia de tendência mais culturalista que se desenhou no final do século XX.
O autor ainda destaca a crescente preocupação, no campo dos estudos históricos, com questões relativas à narrativa histórica,– a escrita da História, – e como esta participa na própria elaboração do fato, tanto quanto a recepção do texto aponta também a ênfase cada vez maior na dimensão ficcional, poética, ou ainda, inventiva do discurso do historiador:
“A história passa a se questionar como discurso, sobre como se dá a produção de sentido neste campo. A ingenuidade de pensar que a linguagem apenas espelha  o objeto da experiência, que pode ser uma instância transparente a dizer as coisas como realmente são, começa a ser questionada pelas reflexões que se dão em torno do papel da linguagem, num contexto em que o desenvolvimento da indústria cultural ou da cultura de massas coloca as linguagens no centro das reflexões políticas e filosóficas”. (Albuquerque Jr., 2007, p.21)
Duas posturas epistemológicas circunscrevem a noção de invenção na produção historiográfica atual: história social e história cultural. Segundo Albuquerque Jr., a história social, de forte influência marxista, seria aquela que defenderia o princípio da abordagem realista e racional para estudar o passado:
“A história social seria aquela que não poria em questão a materialidade, a objetividade, a realidade do fato histórico, mesmo já não considerando possível apreendê-lo em sua totalidade ou tal como ele foi. [....] O momento da invenção de qualquer objeto histórico seria o próprio passado e caberia ao saber histórico tentar dar conta dos agentes dessa invenção, definindo que as práticas, relações sociais, atividades sociais produziram um dado evento. Os documentos históricos são tomados como pistas através das quais se tenta rastrear o momento dessa invenção, os interesses que estavam na raiz de dado acontecimento, os conflitos e contradições que levaram à sua emergência. [....] Cabe ao historiador ir ao passado e interrogar as evidências que este deixou com as perguntas adequadas, munido dos conceitos e métodos apropriados, para este passado oculto revelar-se em sua lógica subjacente, agora por ele percebida, muitas vezes ignorada por seus próprios agentes” (Albuquerque Jr., 2007, p. 24)
Albuquerque Jr. discorda de tal princípio por entender que toda a evidência não é um dado empírico em si mesmo, mas o resultado de um investimento de compreender o passado definido social e historicamente:
“É o próprio conceito, é o discurso lançado sobre a empiria que a transforma em evidência. Nada é evidente antes de ser evidenciado, ressaltado por alguma forma de nomeação, conceituação ou relato. Os documentos são formas de enunciação e, portanto, de construção de evidências ou de realidades. A realidade não é uma pura materialidade que carregaria em si mesma um sentido a ser revelado ou descoberto, a realidade além de empírica e simbólica, é produto da dotação de sentido trazida pelas várias formas de representação. A realidade não é um antes do conceito, é um conceito. [...] Somos nós que evidenciamos, colocamos em evidência dado evento ou conjunto de eventos e, no mesmo ato, esquecemos ou jogamos para os bastidores outros tantos acontecimentos” (Albuquerque Jr., 2007, p.25)
No lado oposto do espectro epistemológico, estaria a posição de uma história cultural de tendência idealista, na qual caberia ao sujeito toda a responsabilidade de inventar o passado: “os fatos seriam apenas fabricações discursivas, os sujeitos e os objetos existiriam apenas no e como texto, como instâncias textuais; a realidade seria apenas uma construção narrativa, um efeito de realidade, viveríamos entre simulacros e simulações, mitos e mitologias” (Albuquerque Jr., 2007, p.26)
Diante do impasse epistemológico que cinde o campo historiográfico atual, Albuquerque Jr. nos fala, aludindo aos escritos de Guimarães Rosa, da terceira margem do rio:
“O que significa pensar a História e escrevê-la desta terceira margem? Signifca primeiro pensar que a História não se passa apenas no lugar da natureza, da coisa em si, do evento, da matéria ou da realidade, nem se passa apenas do lado da representação, da cultura, da subjetividade, do sujeito, da idéia ou da narrativa, mas se passa entre elas no ponto de encontro e na mediação entre elas, no lugar onde estas divisões são indiscerníveis, onde os elementos e variáveis se misturam. [....] Qualquer evento histórico é uma mistura tal de variáveis, é fruto do entrelaçamento de tantos outros eventos de natureza diferenciada, que sempre visualizamos apenas parcialmente e pomos em evidência apenas alguns destes elementos que o constituem. [...]
Nós historiadores, ao contrário do que faz crer as dicotomias que atravessam nosso campo de estudo hoje, não escrevemos a História da margem direita ou da margem esquerda do rio, [....] nós escrevemos a História de dentro dela mesma, escrevemos a História navegando em seu leito, a barca da historiografia, como nos diz Hartog, se não pode ser mais a barca de Ulisses, pois não podemos viver de lendas e viver as lendas, é a barca de Heródoto, a barca curiosa, que percorre mundos e tenta dar testemunhos do que vê, de onde se fala do real, embora com olhos gregos e as formas de narrar gregas, inventando ao mesmo tempo o real, o grego e o bárbaro” (Albuquerque Jr., 2007, p.28-29)
O autor destaca que é através da linguagem e das formas discursivas que o historiador realiza a sua mediação: “Este trabalho de mediação, de tradução, exercido pelo historiador, tem como principal instrumento a narrativa, a linguagem, que é o recurso fundamental de mediação, de mistura, de relação do homem com o mundo. Não existe evento humano e humanização que não passem pelo conceito, pelo significado, pela significação” (Albuquerque Jr., 2007, p.33)
Um dos principais filósofos a pensar a relação entre história e ficção, pela via dos estudos da linguagem e da interpretação de textos, foi Paul Ricoeur, que denominou esse procedimento de hermenêutica.
Verbete
Paul Ricoeur nasceu em Valence, França, em 1913 e faleceu em 2005. Estudou nas Universidades de Rennes e Paris, se doutorou em letras em 1950 e foi professor decano da Universidade de Paris-Naterre nos anos 1960. Atuou também na Universidade de Chicago nos Estados Unidos, regularmente até 1992, quando retoma seu posto em Paris. Autor de inúmeras obras, dentre as quais, os três tomos de “Tempo e Narrativa”,  é considerado uma referência fundamental para o estudo da hermenêutica como processo de interpretação das ações humanas e de suas experiências sociais narradas em textos.
Fim do verbete
Segundo o autor, a hermenêutica como processo de interpretação de textos deveria ultrapassar os limites do próprio texto, sendo, portanto um procedimento de compreensão e interpretação das ações humanas mediadas por seus vestígios, rastros e discursos. Assim, a compreensão da ação e do comportamento humanos estaria mediada pelo uso da linguagem, ou seja, pela produção de discursos.  Ricoeur explica o significado de hermenêutica associando-os aos processos de interpretação e compreensão, que serão desenvolvidos na Aula 15, quando abordarei o problema das formas de produzir o conhecimento histórico. Vale adiantar as definições dadas pelo autor, para assim compreendermos as possíveis relações entre o relato histórico e ficcional.
Escreve o autor na obra “Interpretação e ideologias” (1977): “Adotarei a seguinte definição de trabalho: a hermenêutica é a teoria das operações de compreensão em sua relação com a interpretação  dos textos. A idéia diretriz será, assim, a da referência do discurso como texto” (p.17). Portanto, o  trabalho da hermenêutica atual é buscar as categorias do texto que permitam ultrapassar a posição básica da hermenêutica romântica do século XIX entre explicar e compreender. Compreender deixa de ser uma simples forma de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e de relacionar-se com os outros seres.
Segundo Ricoeur, o discurso sempre envolve um interlocutor ou escritor, uma audiência ou leitor, como também algo dito sobre algum assunto.  Dessa forma, Ricoeur delimita quatro características do discurso que são de fundamental importância para a analogia que faz entre textos e ações. Primeira, o discurso sempre acontece num determinado momento do tempo. Segunda, o discurso sempre se refere a uma pessoa que fala ou escreve, ouve ou lê. Terceira, o discurso estabelece uma comunicação entre interlocutores. Quarta, o discurso se refere ao mundo que ele quer descrever, expressar ou representar. Assim, os discursos tomados como textos levam para dentro da prática de interpretação a dimensão extra e inter textual.
Vale enfatizar que todo o procedimento interpretativo proposto por Ricoeur leva em consideração a dimensão temporal dos discursos, bem como a sua indefectível procedência em uma ação humana. Portanto, nós os sujeitos históricos estamos no mundo mediados por textos/discursos que tornam esse mundo inteligível para quem o vivencia. Os relatos históricos e ficcionais seguem a mesma regra de produção, reconfigurando a experiência vivida em texto/discurso. Entretanto, o que calibraria uma diferença fundamental entre a história e a ficção seria a marca do tempo passado que sustenta a reconfiguração historiográfica em forma de evidência, rastro, ou, ainda, arquivo.
“A questão da relação da história com o passado já não pertence com efeito ao mesmo nível de investigação que de sua relação com a narrativa, mesmo quando a epistemologia do conhecimento histórico inclui em seu campo a relação da explicação com testemunhos, com documentos, com arquivos e  que faz da história um conhecimento por rastros[...] A história como pesquisa detém-se no documento como coisa dada, mesmo quando se eleva ao nível do documento dos rastros do passado que não se destinam a servir de esteio a uma narrativa histórica. A invenção documentária é ainda, portanto, uma questão de espistemologia. O que não o é mais é a questão de saber o que significa a intenção pela qual, ao inventar documentos – a história tem consciência de se relacionar com acontecimentos “realmente” ocorridos. Nessa consciência é que o documento se torna rastro, ou seja, ao mesmo tempo um resto e um signo do que foi e não é mais. Cabe a uma hermenêutica interpretar o sentido dessa intenção ontológica, pela qual o historiador, fundamentando-se em documentos, procura alcançar o que foi mas já não é. Para dizer isso num vocabulário mais familiar, como interpretar a pretensão da história, quando ela constrói a sua narrativa, a reconstruir algo do passado? O que autoriza a pensar na construção como reconstrução?” (Ricoeur, 1997, p.10)
A reflexão de Ricoeur abre espaço para que se pense as possibilidades entre a ficcionalização da história e a historicização da ficção. Evidencia ainda que: “A vantagem de uma abordagem que acopla a história e a ficção diante das aporias da temporalidade é aquela que convida a reformular o problema clássico da referência a um passado que foi 'real' (ao contrário de um 'irreal' da ficção) em termos de reconfiguração, e não o inverso” (Ricouer, 1997, p.10).
Verbete
Aporias da temporalidade – Em filosofia, a noção de aporia quer dizer uma dificuldade de ordem racional, que parece decorrer exclusivamente de um raciocínio ou conteúdo dele. Associada à perspectiva temporal, a aporia passaria a estar relacionada as dificuldades de compreender as formas de sentir, pensar e experimentar a categoria tempo. O tempo como distância, duração, extensão, orientação, situação, bem como as formas interiores ao sujeito de elaborar a sua experiência temporal pela memória, a noção de um presente-passado, presente-atual e presente-futuro seriam algumas das questões associadas às aporias da temporalidade a que Ricoeur se refere no texto citado.
Fim do verbete
O tempo humano ou seja,  tempo que todos nós experimentamos de forma subetiva, é sempre algo narrado, e a narração, por sua vez, revela e identifica a existência temporal do homem. O tempo aponta para a narração e esta aponta a um sentido mais além de sua própria estrutura. A narração se estrutura segundo três dimensões: o tempo vivido, sua integração numa trama e o tempo da leitura, como qual se finaliza a obra. Essa tríplice dimensão coloca a prova os dois modelos narrativos: o relato histórico e o relato de ficção.
Atividade 1
“Um número maior de indivíduos apreende mais o passado por intermédio de romances históricos...do que por intermédio de qualquer história formal. Alguns romances usam a história como pano de fundo para personagens imaginários; outros transformam em ficção a vida de personagens reais, inserindo episódios inventados entre os acontecimentos verdadeiros; já outros distorcem, acrescentam e omitem. Assim como na ficção científica, alguns passados ficcionais são paradigmas do presente, e outros são exoticamente diferentes;ambos inventam o passado para deleite dos leitores[...] Assemelhando-se aos romancistas como contadores de história, os historiadores procuram distanciar-se como especialistas, enfatizando que a história é escrupulosa com os fatos do passado e aberta ao escrutínio de outros pesquisadores, ao passo que a ficção não se prende a nenhuma dessas restrições.
A diferenciação entre história  e ficção é recente foi um subproduto do final da Renascença, voltada para a veracidade e a precisão das fontes históricas. A medida que a história assumiu o rigor científico, o romance histórico avançou na direção da imaginação do passado. A demanda popular por visões imaginativas do passado impregnou tão intensamente a ficção do século XIX, que muitos a identificaram totalmente com o passado. (Lowenthal, David. Como conhecemos o passado, Projeto-História, São Paulo, nº 17, p.1-195, novembro/98p.127-129)
O trecho acima do historiador David Lowenthal identifica alguns elementos importantes para se discutir a relação entre  história e ficção. Leia o texto com atenção e caracterize como essa relação foi construída ao longo do tempo e o papel de cada uma na elaboração de uma consciência histórica pelo presente:
2. O verdadeiro, o falso e o fictício: a escrita da história e as evidências do passado.
O título desse item toma de empréstimo uma parte do livro do historiador Carlo Ginzburg, “O fio e os rastros: o verdadeiro, o falso e o fictício”, escrito em 2005 e publicado no Brasil dois anos depois. O livro é uma coletânea de ensaios escritos ao longo dos últimos anos do século XX, cujo fio condutor é o de investigar as formas de escrita que a História assumiu ao longo da sua própria trajetória. Dialoga, assim, com os artífices de textos antigos, de  tratados sobre o antiquarismo e sobre as possibilidades de provar a existência do passado. Um diálogo no tempo e entre tempos, cujo interlocutor é o historiador de ofício, aquele que assume a profissão de compreender, interpretar, explicar e também de narrar o passado, através das suas evidências.
Na base da sua argumentação está a idéia de que tanto as escritas da história, quanto a própria noção de verdade, não são fenômenos atemporais, possuem também uma historicidade que fornece sentido às diferentes formas de narrar o passado. No entanto, a base do relato histórico são sempre evidências, registros, ou ainda testemunhos. Assim, nesse item, vamos trabalhar os argumentos de Carlo Ginzburg para aprofundar o debate sobre a relação entre história e ficção.
Carlo Ginzburg – Historiador italiano, nascido em Turim, em 1939. Entre 1986 e 2006 foi professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles então retornando para a Itália para lecionar na Scuola Normale Superiore de Pisa. É considerado um dos principais expoentes intelectuais da micro-história, uma abordagem da história que  opera com uma gama significativa de evidencias em torno de casos específicos, como foi o caso do seu famoso livro “Queijo e os Vermes” (Companhia das Letras, 1987), que trata da condenação pela inquisição de um moleiro na região italiana do Friuli, por heresia. Publicou vários livros, dentre estes, muitos já foram traduzidos para o português.
(http://www.sscnet.ucla.edu/history/ginzburg/, acessado em 07/0/2009, dentre outras fontes de informação)
Ginzburg toma como ponto de partida a sua própria experiência de pesquisa e sua a trajetória no ofício. Afirma categoricamente que de que “entre os testemunhos, seja os narrativos, seja os não-narrativos, e a realidade testemunhada, existe uma relação que deve ser repetidamente analisada” (Ginzburg, 2007, p.8). Essa abordagem lança uma nova posição no debate sobre a relação entre história e ficção, como explica: “Contra a tendência do ceticismo pós-moderno de eliminar os limites entre narrações ficcionais e narrações históricas, em nome do elemento construtivo que é comum a ambas, eu propunha considerar a relação entre umas e outras como uma contenda pela representação da realidade. Mas, em vez de uma guerra de trincheira, eu levantava a hipótese de um conflito feito de desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos” (idem, p. 9)
Sem negar a dimensão subjetiva da escrita da História, Ginzburg ressalta que essa dimensão não esvazia o caráter de cientificidade da História, pois esse conhecimento deve estar sempre baseado em evidências ou testemunhos. Esses testemunhos, em compasso com as reflexões de Marc Bloch, na obra “Apologia da História, o ofício do Historiador”, devem ser estudados como documentos, fontes segundo as quais elabora-se uma narrativa sobre o que já foi vivido.
Dessa forma, a mudança fundamental reside na noção de testemunho histórico, até mesmo o testemunho mais voluntário, possuí algo de involuntário aquilo que fornece uma espessura mais profunda à compreensão dos testemunhos do passado, ou seja a própria sociedade que o produziu com toda as suas especificidades relativa às mentalidades, às técnicas e à economia.
Para Ginzburg, a resposta que Bloch forneceu a uma história positivista, contra qual orientou suas reflexões nos anos 1920, serve também de apoio para se combater o ceticismo radicalmente antipositivista  que ataca o caráter de referência dos textos como tais, na virada do século XX para o XXI. Isso porque, “escavando os meandros dos textos, contra as intenções de quem os produziu, podemos fazer emergir vozes incontroladas: por exemplo, a das mulheres ou dos homens que, nos processos de bruxaria de fato escapavam dos estereótipos sugeridos pelos juízes. Nos romances medievais, podemos detectar testemunhos históricos involuntários sobre usos e costumes, isolando na ficção fragmentos de verdade[...] A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de reflexão histórica ou ficcional, e assim por diante. ( Ginzburg, 2007, p.11)
Entretanto, nosso autor não se limita a criar uma ponte entre ficção e relato verídico, aponta que o historiador em suas pesquisas não pode bancar o ingênuo, rejeitando suas fontes por falsos: deve encarar o sentido da mentira e buscas nas razões do passado os motivos da falsificação. Dessa forma, Ginzburg amplia o debate sobre as relações entre a ficção e a realidade, introduzindo um terceiro termo, o não autêntico, ou o fictício que se faz passar por verdadeiro, sendo esse “ um tema que deixa os céticos em situação incômoda, pois implica a realidade: essa realidade externa que nem sequer as aspas conseguem exorcizar....ninguém pensará que é inútil estudar falsas lendas, falsos acontecimentos. Falsos documentos: mas uma tomada de posição preliminar sobre sua falsidade ou autenticidade é sempre indispensável”.
Complementa a sua avaliação sobre o lugar de fala dos historiadores e romancistas apoiando-se naqueles que deram o primeiro passo rumo a uma escrita da história no Ocidente, os gregos.
“Os historiadores, escreveu Aristóteles, falam do que foi (do verdadeiro), os poetas, daquilo que poderia ter sido (do possível). Mas naturalmente, o verdadeiro é um ponto de chegada, não um ponto de partida. Os historiadores (e, de outra maneira, também os poetas) têm como ofício alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo” (Ginzburg, 2007, p.14)
Para destrinchar esse entrelaçamento, Ginzburg busca analisar os “efeitos de verdade” que fazem do texto histórico um texto aceito como um texto verdadeiro, ou ainda, que possui credibilidade, ou ainda, institucionalidade. Como explica no trecho seguinte:
“Afirmar que uma narração histórica se assemelha a uma narração inventada é algo óbvio. Parece-me mais interessante indagar por que percebemos como fatos reais os fatos contados num livro de história. Em geral se trata de um resultado produzido por elementos extra-textuais e textuais. Vou me deter nestes últimos, procurando ilustrar certos procedimentos, ligados a convenções literárias, com que historiadores antigos e modernos tentaram comunicar o ‘efeito de verdade’ que consideravam parte essencial da tarefa que se atribuíam” (Ginzburg, 2007, p.18).
Ginzburg retoma a expressão do semiólogo francês Roland Barthes, efeito do real, mas numa direção oposta. Para Barthes, que identifica realidade e linguagem, ‘o fato nunca tem mais do que uma existência lingüística’ e a ‘verdade’, entre aspas, é assimilada pela polêmica contra o realismo. Ginzburg defende que os fatos têm também uma existência extralingüística, e que a noção de verdade é parte de uma história muito longa, que coincide talvez com a história da espécie. Mas os processos usados para controlar e comunicar a verdade mudaram ao longo do tempo. (Ginzburg, 2007, p.341)
Ainda seguindo a pista dada pela historiografia clássica grega  sobre o valor de verdade na produção do relato histórico, Ginzburg introduz a noção grega de enargeia (efeito estilístico que surge de uma descrição em que nada é supérfluo) do grego – vividez, ou, ainda, a capacidade de reviver o fato relatado pela sua narração. Nessa modalidade narrativa nada é omitido, donde surgem a abundância de detalhes. Dentre os efeitos da enargeia estava a sua capacidade mimética.
Nesse sentido, para a historiografia clássica o esquema que funcionava era o seguinte: “narração histórica – descrição – vividez – verdade. A diferença entre o nosso conceito de história e o dos antigos ser resumiria da seguinte forma: para os gregos e romanos a verdade histórica se fundava na evidentia (o equivalente latino de enargeia proposta por Quintiliano); para nós, nos documentos (em inglês, evidence)” (Ginzburg, 2007, p.24)
A partir do século XVI, os historiadores que se consideravam herdeiros de Heródoto, Tucídides e Lívio a verdade era considerada antes de tudo uma questão de persuasão, ligada só marginalmente ao controle objetivo dos fatos. A grande ruptura vem só mais tarde, no século XVII quando se começou a analisar sistematicamente a diferença entre fontes primárias e fontes secundárias, como aponta Ginzburg:
“No seu famoso ensaio ‘Storia antica e antiquaria’, Arnaldo Momigliano demonstrou que essa contribuição decisiva ao método histórico vinha de especialistas em Antiguidade, que usavam testemunhos não literários para reconstruir fatos ligados á religião, às instituições políticas ou administrativas, à economia [...] os especialistas em Antiguidade objetaram que medalhas, moedas, estátuas, inscrições ofereciam uma massa de material documental muito mais sólida e fidedigna do que fontes narrativas contaminadas por erros, superstições e mentiras. A historiografia moderna nasceu da convergência entre duas tradições intelectuais diferentes: a histoire philosophique à Voltaire e a pesquisa sobra a Antiguidade” (Ginzburg, 2007, p.24)
Temos, portanto, de um lado, a história cujo princípio ético defendido pela filosofia seria o de diferenciar o correto do incorreto, instruindo as futuras gerações a agir – a história magistra vitae (em latim “mestra da vida”, segundo a célebre definição de Cícero). De outro a história como um inventário de evidências materiais do passado, defendida pelo movimento antiquarista. Nesse caso, o uso de elementos extra-textuais aparece nos anais de forma a dar credibilidade ao relato descritivo:
“As citações, notas e sinais lingüístico-tipográficos que as acompanhavam podem ser considerados – como procedimentos destinados a comunicar um efeito de verdade – os equivalentes da enargeia [...] A enargeia era ligada a uma cultura baseada na oralidade e na gestualidade; as citações na margem, as remissões ao texto e os colchetes, a uma cultura dominda pelos gráficos. A enargeia queria comunicar a ilusão da presença do passado; as citações sublinham que o passado nos é acessível apena de modo indireto, mediado. (Ginzburg, 2007, p.36-37)
O movimento antiquarista também valoriza o “documento como prova material do passado” – as construções antigas, as relíquias, as moedas e insígnias, bem como os afrescos e colunas, seriam muito mais eloqüentes e reais do que qualquer narração completa do passado. Assim, segundo nosso autor, a noção de prova supera a da descrição completa: “Graças sobretudo à história eclesiástica e antiquária, a prova documental (evidence) impôs-se sobre a enargeia (evidentia in narratione). Embora não sejam de fato incompatíveis, nenhum historiador hoje pode pensar em se servir da segunda como sucedâneo da primeira”. (Ginzburg, 2007, p.38)
Portanto, o regime de verdade com o qual o historiador opera não pode perder de vista duas características fundadoras da disciplina: a responsabilidade ética da produção do relato verídico e o apoio em evidências a partir das quais suas afirmações podem ser testadas.
Atividade 2
Em 1395 Manuel Crisolora, erudito grego que se transferiu para a Itália escreveu um texto datado de 1411. Depois da sua ida para Roma e da presença viva da antiguidade nas construções e cultura material reflete:
“acredita-se que Heródoto e outros historiadores nos tenham prestado um serviço útil, mas nessas obras é possível ver tudo, como se vivesse a verdade naqueles tempos e entre os diferentes povos, de tal forma são uma historiografia que tudo definem de modo simples, aliás, não uma obra histórica (historian), mas eu diria quase que a visão direta (autopsian) e a presença efetiva (parousian) de toda a vida que naqueles tempos se desenrolavam em cada lugar”
Ginzburg comenta o trecho ressaltando que Crisolora efetivamente recupera o valor de vividez e o efeito de verdade contido nos textos dos historiadores antigos, mas retirando-lhes o caráter de relato histórico e valorizando a noção de testemunho direto – ou seja uma fonte de conhecimento sobre o passado. No entanto, reafirma que nesse momento a posição mais comum seria a de valorizar a prova material e objetiva do passado nos restos e resquícios da antiguidade, em detrimento dos abusos retóricos da narração.
“O tema não era novo; nova era a desconfiança na possibilidade de evocar, graças ao virtuosismo retórico, o passado como um todo. No lugar começava a aflorar a consciência de que nosso conhecimento do passado é inevitavelmente incerto, descontínuo, lacunar: baseado numa massa de fragmentos e de ruínas” ( Ginzburg, 2007, p.40)
Tanto o trecho do historiador do século XV quanto o do século XXI nos permitem avaliar posições distintas sobre a forma como a história elabora as evidências do passado. Identifique e caracterize  tais posições:
10 linhas
3. História, narrativa e mundo real: continuidades e descontinuidades
Um terceiro e último aspecto da relação entre história e ficção diz respeito ao caráter narrativo do relato histórico. Mais uma vez o debate em torno da narratividade em história, pode ser delimitado entre duas posições epistemologicamente discordantes: os realistas que defendem a continuidade entre a narrativa e o mundo real e os anti-realistas que trabalham no princípio da descontinuidade (Cardoso, 2005)
No capítulo 3 de seu livro de ensaios, Um historiador fala de teoria e metodologia”, o historiador Ciro Flamarion Cardoso, discorre sobre essas duas posições divergentes, assumindo claramente a defesa pelo realismo historiográfico. Cardoso aponta que os debates sobre a natureza da relação que existe entre narrativa e os fatos que descreve “é um importante debate epistemológico, tendo a ver diretamente com a veracidade (ou não) das explicações que assumem a forma de um relato, como ocorre freqüentemente no caso dos textos históricos” (Cardoso, 2005, p.63). Esses debates, segundo o autor, associam-se às discussões sobre o realismo e o anti-realismo, este último voltado para perspectivas estetizantes da História, e a decisão de se produzir, em História, textos com caráter científico ou da mesma ordem dos da literatura ficcional.
Ciro Flamarion Santana Cardoso – historiador brasileiro nascido em 20 de agosto de 1942. Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1965) e doutorado em História - Université de Paris X, Nanterre (1971). Professor titular da Universidade Federal Fluminense, possui larga produção bibliográfica, incluindo interesses temáticos que vão da Historiografia e da Metodologia da História até os estudos sobre Antiguidade e, mais particularmente dentro deste campo, a Egiptologia.
Na seqüência da sua argumentação Cardoso avalia o assalto a posição realista que defende a veracidade das narrativas históricas, dede que essas seguissem certas regras de elaboração, como tendo sido perpetrado por filósofos, teóricos da literatura e certos historiadores que defendem que os fatos humanos são descontínuos, não se agrupam em narrativas e que qualquer texto narrativo visa criar um efeito de realidade. Tópicos defendidos pelos representantes da virada lingüística e pelas teorias de descontrução.
Assim, Cardoso polariza o debate em torno da narrativa em duas posições distintas: os defensores da continuidade entre narrativa e mundo real e o lado diametralmente oposto, que defendem a descontinuidade.
A posição anti-realista que defende a descontinuidade é assim resumida por Cardoso:
“As teorias que afirmam a descontinuidade entre narrativa e realidade argumentam com freqüência que a organização do texto em forma de relato impõe aos fatos a que se refere uma estrutura cuja a forma é a de uma narrativa com começo, meio e fim – estrutura que procede do fato de narrar, não dos próprios fatos  vividos no mundo real. A narrativa não passa de um produto de uma construção do imaginário (da ‘imaginação histórica’, diz Hayden White); não tem qualquer veracidade, mesmo quando apoiada em fontes, pois não se trata de uma questão de documentação: tratar-se-ia de uma descontinuidade profunda. Não há começo, meio, fim na vida individual ou coletiva: há mera seqüência de eventos que ‘terminam’ onde se quiser, mas nunca concluem, posto que sempre existem um antes e um depois. Em outros termos: textos e realidades se situam em planos distintos, que não há como aproximar. Ao se operar uma assimilação dos planos, cai-se na ilusão, no escapismo, no desvio; ou mesmo, tal operação pode constituir um instrumento de manipulação. (Cardoso, 2005, p.65)
Do outro lado do espectro epistemológico estariam os “continuistas”, dentre os quais o próprio autor se inclui. Os autores que defendem a continuidade entre a narrativa e o mundo real, levam em conta que, longe de deformar os fatos, a narrativa prolonga seus traços fundamentais. Dessa forma, existiria uma comunidade formal de características entre a narrativa e a realidade humana, tanto individual quanto coletiva.
Essa perspectiva defende que toda a ação humana tem uma estrutura temporal (passado/presente/futuro), comum ao texto, a vida, narrativa e a realidade. Sendo o presente sempre um ponto de vista que se abre para o passado e futuro. As ações humanas são orientadas para um fim, para um futuro que se projeta, como possibilidade a ser conquistada. Segundo Cardoso:
“Isso acontece tanto quando estamos em plena ação quanto ao haver um distanciamento reflexivo e deliberado, como por exemplo, ao formularmos projetos e avaliarmos e revisarmos circunstancias que mudam, o já realizado e o que falta em dada seqüência de tarefas. A deliberação é antecipação do futuro, é o que unifica a ação em passos, etapas, meios, fins. É óbvio que ela não pode ser limitada ao presente. É claro, também, que na vida há incoerenciase ruído ou estática que, ao deliberarmos acerca do que fazer, não temos como eliminarO futuro aqui é só imaginado ou planejado[...] o que importa, porém, para o argumento é que mesmo um futuro projetado ou previsto cria, na vida real, a possibilidade de transformá-la num relato coerente – para nós mesmos ou para  outros com que falemos[...] A atividade narrativa, neste sentido, é parte inseparável do plano de ação, não é algo incidental ou externo. A vida não somente se vive, ela se relata, se conta o tempo todo: vivemos o relato, relatamos a vida. Com freqüência mudamos o relato, ou seja, nossa visão acerca da vida, para levar em conta novos eventos e incidentes; mas também tentamos, na medida do possível, mudar os eventos para salvar o relato, isto é, o plano , a versão, o futuro projetado” (Cardoso, 2005, p.66-67).
A dimensão coletiva da experiência social também, neste caso, a estrutura do tempo social real é narrativa. Seguindo as pondenrações de David Carr, Cardoso considera que “em cada presente, é a projeção prospectiva/retrospectiva que lhe dá sentido e configuração, unificando os fatos e ações num projeto reconhecível quanto aos objetivos”.  É importante destacar que  a idéia de sujeito coletivo está associada as categorias coletivas da sociedade: estados-nação, grupos lingüísticos ou religiosos, partidos, etc. O ‘eu’ e os ‘nós’  explica Cardoso, “não configuram realidades físicas: mas têm existência real, não são meras ficções; e se baseiam sempre em relatos ou narrativas. Por isto, os textos históricos, narrativas eles também, não são um desvio ou deturpação da estrutura dos fatos ou processos de que falam, que narram: são uma extensão legítima de suas características intrínsecas” (Cardoso, 2005, p.69).
O autor ainda esclarece que dois níveis narrativos devem ser considerados: o de primeiro nível, que diz respeito a vivência individual e social e as suas formas de elaboração; e um segundo nível associado as formas são constituídas as narrativas históricas com base em testemunhos. Nas palavras do autor:
“O processo narrativo prático de primeiro nível, constitutivo de uma pessoa ou comunidade, pode converter-se legitimamente em processo narrativo de segundo nível, cognitivo. Isto acarretará mudanças de conteúdo. Um historiador pode contar a História de uma comunidade de um modo muito diferente de como a comunidade narrava-se a si mesma através de seus dirigentes, cronistas, jornalistas, clérigos etc. Mas a diferença não residirá na forma. As narrativas de segundo nível não refletem ou reproduzem, simplesmente as de primeiro nível que tomam como tema: elas mudam e melhoram o relato, mesmo porque sem dúvida se aproveitam da posição ex post do historiador. Mas não é verdade que a forma narrativa, própria do segundo nível, inexistia no primeiro, e que, por isto, narrativa e realidade vivida sejam irreconciliáveis, existam em planos distintos que não façam interseção” (Cardoso, 2005, p.70)
Dessa maneira, Cardoso defende a lógica do realismo historiográfico considerando tanto a inscrição do vivido nos textos, como dos textos na experiência social. Em certa media, autores como Roger Chartier (2002) e o já mencionado Paul Ricouer compreender a dialética das narrativas como práticas sociais.
Cada vez mais encontramos nas livrarias abordagens que, mesmo escritas por historiadores profissionais, assumem um estilo narrativo ficcional. Dramatizando a vida de personagens históricos, construindo uma ‘mise-en-scéne’, na qual personagens reais ganham contornos de  heróis de romances num claro investimento estético. Em geral, obras de qualidade que se utilizam de recursos estilísticos da ficção, também se baseiam em evidências factuais para colher informações sobre situações, processos, ambientes e sobre os próprios personagens ali tratados.
Não cabe julgar o valor estético de obras historiográficas que investem na divulgação no conhecimento histórico, de modo a tornar a História mais acessível a um grande público. A questão que se coloca e que vale de medida para a formação do historiador de ofício é entender que as experiências sociais passadas coletivas ou individuais chegam sempre de forma desigual. Por um lado a Humanidade não tem condições (ou mesmo interesse) de tudo guardar, transformando cada presente no seu duplo, por outro, as formas narrativas que sustentam essa experiência podem ser mais ou menos perecíveis.
Assim, a tarefa da historiografia não é inventar um passado que não existiu, sequer em evidências fragmentadas, mas reconstituir os sentidos possíveis das ações humanas no tempo.
Atividade 3
Escolha um romance histórico que você tenha lido, um filme de temática histórica que você tenha visto, uma mini-série ou novela de época que você já tenha assistido e produza um texto de 20 linhas no qual você apresente a abordagem adotada pelo autor(a); apresente brevemente a narrativa e finalmente discuta como esse material imaginou o passado.
20 linhas
Resumo:
As relações entre história e ficção integram os debates sobre os paradigmas realistas e anti-realista na historiografia contemporânea.
O estudo sobre o relato histórico e sua produção deve levar em consideração a lógica de comprovação histórica, buscando evidenciar as estratégias metodológicas presentes na construção do texto.
A História, ao contrário da ficção, tem um compromisso com a busca de uma coerência da narrativa contida nos testemunhos diretos e indiretos.
Os recursos estilísticos na produção do texto histórico devem considerar que no fundamento da disciplina estão dois princípios básicos: a responsabilidade ética da produção do relato verídico e o apoio em evidencias com as quais suas afirmações podem ser testadas.
A relação que a narrativa histórica estabelece com o mundo real é considerada como descontínua pela historiográfica pós-moderna e contínua pelo realismo historiográfico
Bibliografia.
Albuquerque Jr., Durval M.de. História: a arte de inventar o passado, Bauru, SP: Edusc, 2007.
Cardoso, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia, ensaios, Bauru, SP: Edusc, 2005.
Chartier, Roger. À Beira da Falésia: história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002
Ginzburg, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Hobsbawm,  Eric. Sobre História, São Paulo: Companhia da Letras, 1998.
Lowenthal, David. “Como conhecemos o passado”, Projeto-História, São Paulo, nº 17, p.1-195, novembro/98.
Ricouer, P.  Interpretação e ideologias, Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1977.
Ricouer, Paul. Tempo e Narrativa – Tomo III, São Paulo: Papirus Editora, 1997
Santos, Afonso Carlos Marques dos. Eric Hobsbawm: a História como síntese interpretativa, In: http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0017.htm, acessado em 06/01/2009
Filme:
Narradores de Javé, Eliane Caffé , 2004.

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