sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Aula 3. A História e seus métodos: observação, compreensão e explicação.


UFF/CEG/ICHF

Métodos e Técnicas de Pesquisa em História.
Profª.: Ana Maria Mauad.
Aula 3.
A História e seus métodos: observação, compreensão e explicação.
META DA AULA
Apresentar o estatuto da história como forma de conhecimento, enfatizando a abordagem dos seus procedimentos analíticos: observação, compreensão e explicação
OBJETIVOS
Após o estudo do conteúdo desta aula, você deverá ser  capaz de:
1.       Diferenciar as etapas e características do método histórico tradicional e do “renovado”;
2.        Identificar as relações entre história e hermenêutica;
3.       Caracterizar o papel ocupado pelos procedimentos de observação, compreensão e explicação na historiografia contemporânea.
Introdução:
Em seu livro, Liberata, a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX, a historiadora Keila Grinberg, nos conta a seguinte história:
“Por volta de 1790, José Vieira Rebello, morador da enseada das Garoupas, termo do Desterro, foi à Vila de Paranaguá comprar uma mulatinha de 10 anos, Liberata, que pertencia a Custódio Rodrigues. Feita a transação, Vieira levou-a para a casa e, escondido de sua mulher, passou a persegui-la pelos remotos e despovoados da região. Até que um dia ele conseguiu levá-la para os matos e, finalmente, a possuiu. A partir de então, o capricho virou hábito.
Diz Liberata que nunca permitia de bom grado os tratos ilícitos que com ela seu senhor tinha, por medo da senhora e de sua filha Anna. Mais da filha, porque esta, ainda solteira, havia tido um filho com um homem da região e, com ajuda do pai, tinha-o matado e enterrado debaixo da goiabeira um pouco ali adiante, no Sítio da Tapera. Passando casualmente por ali, Liberata testemunhou o crime e o enterro. Desde então, Anna Vieira não lhe concedeu um só minuto de sossego.
Liberata acabou consentindo na mancebia, pois o senhor prometeu libertá-la tão logo sua mulher descobrisse o caso – até porque não queria que ela servisse a outrem” (Grinberg, 1994, p.15).
A história de Liberata prossegue com o nascimento do filho bastardo de Rebello, com a testemunho de um outro crime por Anna e Rebello, com a promessa de ser libertada e, finalmente, com a conquista da liberdade através de um acordo que fez com o seu patrão, evitando assim uma ação formal de liberdade.
A história contada pela historiadora, com tintas de romance, foi totalmente retirada dos autos do processo aberto pelo advogado Francisco José Rebello, representante legal de Liberata, em julho de 1813 e que se encontra no Arquivo Nacional – Rio de Janeiro (Processo nº 1337, maço 214, Desterro, Corte de Apelação).
Na seqüência da obra, acompanhamos a discussão levantada em torno da documentação sobre escravidão no século XIX; as novas abordagens que a historiografia dos anos 1980 e 1990 desenvolveram em torno do papel do escravo como sujeito da sua própria história; o funcionamento do Direito no Império Brasileiro; o significado das ações de liberdade nas relações entre senhores e escravos, mediadas pelo Estado, além de uma análise serial e quantitativa sobre a presença recursos e processos em torno dos pedidos de liberdade pelos escravos.
Assim, a metodologia utilizada pela historiadora para desvendar os sentidos históricos que se poderiam retirar da trajetória de Liberata nos põe em contato com um universo muito rico de possibilidades analíticas. Além de nos apresentar um personagem histórico tão “de perto”: (Liberata, com seus medos, angústias, expectativas e alegrias), nos ilumina uma rede de relações sociais que fundamentava a sociedade escravista do Oitocentos.
Em sua análise, Keila Grinberg interpreta uma história, compreende os argumentos dos seus personagens, analisa os estudos que fundamentam a compreensão do período histórico estudado e, acima de tudo, junta as peças do quebra cabeça documental, propondo uma explicação que reconstrói a História em narrativa historiográfica.
O estudo do seu livro não se confunde com a leitura de um romance, tampouco a “carpintaria” do seu texto segue as mesmas regras de ofício do escritor ficcional. Isso porque ela utiliza-se de recursos extra-textuais, tais como notas de referência documental, bibliografia associada à temática da escravidão, quadros de quantificação e gráficos, enfim, um conjunto de elementos que ajudam a comprovar historicamente o que tem como objetivo explicar. No entanto, opera com todos esses recursos com um texto que corre solto no ritmo de um bom romance, garantindo assim uma leitura prazerosa. Por que deveria ser diferente? Por que o rigor da oficina histórica e da produção do conhecimento cientificamente verificável deve levar necessariamente a produção de textos pesados e enfadonhos?
Na aula de hoje, vamos estudar os princípios do método histórico, seus procedimentos analíticos e o papel reservado ao historiador nesse processo.
1. O método histórico em questão: método histórico tradicional e a renovação atual.
Seu desenvolvimento se deve em primeiro lugar, ao surgimento de disciplinas voltadas para a análise de documentos medievais. A erudição francesa teve em Mabillon seu nome mais conhecido, pioneiro na análise da autenticidade ou falsidade dos documentos da Idade Média (DE RE DIPLOMÁTICA, 1686). A sistematização da crítica documental foi sendo elaborada pouco a pouco, desde o Renascimento e, sobretudo a partir do século XVII.
No século XIX, os pressupostos de um método de caráter eminentemente empírico serviram de base para a organização da disciplina histórica, em termos institucionais. Neste século, foram os historiadores alemães – em especial Leopold Von Ranke – e posteriormente os membros da Escola Metódica Francesa, os responsáveis pela formalização do método crítico aplicado aos documentos históricos.
Nessa época, a afirmação dos historiadores franceses Langlois e Seignobos de que: “a história se faz com documentos. Porque nada substitui os documentos: onde não há documentos não há história”, tornou-se um princípio inquestionável. Numa sentença como essa há algo de verdadeiro e algo de falso. Verdadeiro, porque efetivamente a ausência de fontes impede que o historiador possa realizar plenamente a sua função: como comprovar sem elas as suas hipóteses de trabalho? Por outro lado, é falsa, pois condiciona todo o conhecimento histórico, e, por conseguinte, todo o trabalho do historiador a recopilação de fontes escritas, importantes para o conhecimento histórico, mas não exclusivamente.
Neste sentido, parte fundamental do método tradicional voltava-se, para o tratamento das fontes escritas, baseado em dois procedimentos fundamentais: a heurística e o apoio nas chamadas disciplinas auxiliares.
Heurística: atividade que consiste em localizar, reunir e classificar as fontes históricas, através da criação de listas, repertórios, inventários, índices remissivos, algumas vezes, publicando os de natureza manuscrita considerados de grande importância. Hoje em dia, em comparação com o século XIX, a heurística dispõe de vários meios adicionais de armazenar e fazer circular informações necessárias ao trabalho histórico, tais como: banco de dados, microfilmes, microfichas, fotocópias, etc.
Disciplinas auxiliares: numismática, diplomática, filologia, sigilografia, paleografia, genealogia, cronologia etc. Atualmente, tais disciplinas são vistas com mais autonomia.
1.1. Princípios básicos do método histórico “renovado”.
A escola metódica do século XIX – e suas variantes por todas as partes do mundo – sofreu críticas de diversos setores da produção historiográfica – notadamente das correntes ligadas ao materialismo histórico e pela Escola dos Annales. Tais críticas baseavam-se na premissa de que as fontes não falam por si só, os historiadores devem fazer-lhes perguntas. Perguntas que não decorrem das próprias fontes, mas são decorrentes da cultura histórica do pesquisador, de sua base teórica, enfim, de um conjunto de conhecimentos exteriores ao documento com o qual se está trabalhando. Neste sentido, uma primeira pergunta que o historiador deve propor é: que papel representa na prática do historiador o conhecimento baseado ou não em fontes?
Quando elegemos o campo a ser estudado ou as hipóteses de trabalho, e mais tarde quando estabelecemos explicações causais e fazemos generalizações nos apoiamos, sobretudo, nos marcos teóricos, no conhecimento dos códigos pertinentes às mensagens que são as fontes históricas, no conhecimento de outros fatos e processos de comparação.
Entretanto, na etapa intermediária que consiste no estabelecimento de fatos e processos históricos que interessam especificamente a investigação que se está realizando, ainda que intervenham conhecimentos externos a elas, o papel das fontes é de fundamental importância.
Sendo assim, toda a fase prévia relativa ao levantamento nos arquivos, sistematização em fichas e bancos de dados, enfim organização dos instrumentos de pesquisa, prepara o campo de trabalho para a etapa intermediária, que consiste na elaboração de um conjunto de operações analíticas realizadas mediante ao uso das fontes. É neste momento que surgem as condições para se produzir conhecimentos novos resultantes da pesquisa concreta de que se trate, através do processamento do material investigado. As construções teóricas de todo o tipo carecem de valor se em nenhum momento não são submetidas à prova das evidências históricas.
A etapa intermediária, definida como um conjunto de operações analíticas realizadas mediante ao uso das fontes, divide-se em geral em dois momentos:
1º Crítica externa dos documentos - dividida em três etapas:
a) erudição ou autenticidade: avaliar se o documento é verdadeiro ou falso, avaliar as alterações que sofreu ao longo do tempo e identificar o autor;
b) restituição ou veracidade: tentativa de restaurar ao documento ao seu estado original;
c) procedência ou localização: determinar a data, o local, a autoria e a origem. Todos estes procedimentos variam de acordo com a natureza da fonte – escrita, visual, oral.
2º Crítica interna ou veracidade dos testemunhos – dividida em duas etapas:
a) hermenêutica:  interpretação, que consiste em apreender o conteúdo exato e o sentido de um texto, partindo de um conhecimento aprofundado da língua da época e das convenções culturais vigentes no período de sua composição (modas intelectuais, etiquetas, fórmulas de cortesia, estilos, etc).;
b) crítica de sinceridade: consiste em avaliar se são creditáveis as informações contidas no texto, sendo complementada pela crítica de exatidão, que restabelece o grau de conhecimento direto efetivo que poderia ou não ter o autor, segundo sua posição em relação aos fatos que enuncia. A forma de proceder é a comparação sistemática de todos os testemunhos disponíveis para cada fato, dado ou processo.
Atualmente, a crítica interna já incorporou o princípio de que não há testemunho transparente, mesmo verdadeiro é preciso aprofundar na análise das condições de produção do testemunho histórico. Tal pressuposto obrigou o desenvolvimento, por parte dos historiadores, de uma crítica aprofundada em dimensões jamais imaginada pelo historiador oitocentista. Hoje, os textos não são tratados apenas em seus conteúdos ou enunciados, mas através de métodos de análise de discurso, enunciação, com apoio de uma teoria social. Em outras palavras, procura-se determinar as condições sócio-históricas da produção dos testemunhos. A própria noção de hermenêutica tornou-se mais complexa, como veremos depois da nossa atividade.
Atividade 1
 “Os gregos contam que Teseu recebeu de presente de Ariadne um fio. Com esse fio Teseu se orientou no labirinto, encontrou o Minotauro e o matou. Dos rastros que Teseu deixou ao vagar pelo labirinto, o mito não fala. [...] Há muitos anos trabalho como historiador: procuro contar, servindo-me dos rastros, histórias verdadeiras (que às vezes têm como objeto o falso)” (Carlo Ginzburg, O Fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.7)
Comente o trecho, destacando duas características do método histórico na atualidade.
2. Hermenêutica e História.
Na Aula 14, já havíamos iniciado a apresentação dos estudos sobre hermenêutica, associada à reflexão do filósofo francês Paul Ricoeur. Nesta parte da aula, tomaremos um outro rumo, buscando caracterizar as origens históricas e filosóficas da hermenêutica, em sua relação com a constituição do campo de estudos históricos e de seus métodos. Para tanto, tomo como apoio o texto da historiadora Verena Alberti, “A existência na história: revelações e riscos da hermenêutica”, publicado na Revista Estudos Históricos (1996), no qual explica a trajetória da hermenêutica como campo de conhecimento e suas relações com a História.
Informações complementares
A Revista Estudos Históricos é uma revista semestral dedicada à História do Brasil vista de uma perspectiva multidisciplinar. Ela é publicada ininterruptamente pelo CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas) desde 1988, e abre espaço para a publicação de trabalhos de pesquisadores da comunidade acadêmica nacional e internacional.
Segundo Alberti, podemos  dividir a "tradição hermenêutica" em três movimentos ou modos de abordagem. Em primeiro lugar, aquele que considera a hermenêutica como a ciência da interpretação de textos, independentemente (ou menos dependentemente) de uma concepção filosófica que lhe seja atrelada. A esta primeira definição estariam associadas às iniciativas de interpretação de textos bíblicos feitas pela hermenêutica medieval e durante a Reforma, por Marin Lutero. O segundo movimento diz respeito à hermenêutica filosófica, que toma a compreensão hermenêutica como pressuposto da existência humana. O terceiro movimento seria o da adoção da hermenêutica não como teoria ou método, e sim como um "modo de pensar" difundido e praticado em diversos campos -- no cotidiano, em todo tipo de texto, na história, na psicanálise etc. -- graças à sua pretensão ao universal
Sobre este terceiro movimento, Alberti completa:
“Enquanto "modo de pensar", então, a hermenêutica estará também lá onde não aparece especificamente como interpretação de textos, fundamentos epistemológicos ou imperativos ontológicos. E isso significa: nos meios de comunicação, nos livros, nos filmes, em toda produção que privilegie um trabalho simbólico do passado tendo em vista o presente. Esse terceiro movimento é a meu ver um dos responsáveis pela dificuldade de se pensar a hermenêutica e de se tratá-la enquanto tema, porque é natural que algumas das teses dos autores sejam consideradas por demais evidentes, já que nós mesmos estamos mergulhados naquele "modo de pensar".(Alberti, 1996, p.2).
Por estarmos o tempo todo inseridos em princípios de racionalidade que orientam nossa ação e reflexão e, assim sendo, nos colocam dentro de um “modo de pensar”, a autora opta por acompanhar historicamente a constituição da hermenêutica como campo de conhecimento.
Etimologicamente, explica Alberti a palavra hermenêutica vem do verbo grego hermeneuein, traduzido em geral por "interpretar", e ao substantivo hermeneia, "interpretação". Esta noção foi  objeto do tratado "Da interpretação", escrito pelo filósofo gergo Aristóteles. O termo aparece também em outroa autores gregos, estando quase sempre associado ao  deus Hermes.  Não se sabe, esclarece a autora, se seu nome deu origem ao termo, ou vice-versa. Pois o seu sentido estava associado a uma das atribuições desse Deus, que era a de transmutar aquilo que estivesse além do entendimento humano em uma forma que a inteligência humana pudesse compreender. “Munido de chapéu e sapatos alados, Hermes era mensageiro e arauto dos deuses” (Alberti, 1996, p.4).
Dentro do campo de significados atribuído pelos gregos a palavra hermenêutica já se pode delimitar, os procedimentos analíticos que a essa atividade se associariam, como destaca Alberti existiriam três acepções do verbo grego hermeneuein:
“ dizer (to say), no sentido de "exprimir em voz alta", explicar (to explain ), e traduzir (to translate), no sentido não apenas de passar de uma língua para outra, mas também de traduzir "historicamente" -- como, por exemplo, "traduzir" os mundos de Homero ou do Velho Testamento, que nos são estranhos. As três vertentes básicas do verbo grego são equivalentes ao inglês to interpret e, podemos dizer também, ao verbo interpretar do português. A primeira acepção, passível de gerar alguma dificuldade, pode ser facilmente resgatada pela idéia de "interpretar uma canção": o substantivo hermeneia podia referir-se a uma recitação oral de Homero, portadora da mensagem do poeta” (Alberti, 1996, p.5). 
A noção de interpretação que foi incorporada e atualizada pela hermenêutica bíblica, desde a época dos patriarcas do judaísmo, passando pela teologia medieval e pela Reforma, até a teologia moderna, tinha como característica fundamental “a adoção de um sistema de interpretação no qual se procura o sentido oculto, ou seja, a verdade moral do texto. Por detrás dessa idéia está evidentemente uma certa concepção da linguagem que toma o sentido literal de um texto como uma sombra do "sentido em si", isto é, da verdade, sem considerar seu aspecto produtor” (Alberti, 1996, p.6)
Entretanto, a associação da hermenêutica com a exegese (explicação ou interpretação cuidadosa de um texto, de uma obra artística etc.) de textos bíblicos seria superada pelo humanismo do Renascimento, gerando uma crise na tradição hermenêutica de caráter metafísico, na medida em que incluía o sujeito como elemento ativo no processo de interpretação. Segundo Alberti,
“Podemos dizer que os estudos que aliavam filologia e racionalismo no século XVIII estavam de alguma forma inseridos no movimento conhecido como "filosofia da história" (Geschichtsphilosophie), que explicava a trajetória da humanidade através do progresso da razão, das artes e das ciências. Alguns autores avaliam que, no momento em que essa "filosofia da história" deixa de ser convincente, ou seja, no momento em que a idéia de evolução começa a falhar, surge a hermenêutica filosófica como "modo de pensar" o passado e resolver o problema do "making sense of history"(Alberti, 1996, p.6).
Da leitura desse trecho, podemos apreender que, com o advento da modernidade, ocorre um deslocamento no sentido atribuído à hermenêutica pela tradição católica. Para entender melhor esse novo sentido dado á hermenêutica, Alberti recorre a noção de “ campo hermenêutico”,  do professor em literatura comparada em Stanford e teórico alemão, Hans Ulrich Gumbrecht. Para esse autor campo hermenêutico é a atitude frente ao mundo que se caracteriza pela metáfora de "ler o mundo". Sua emergência se dá no Renascimento, mas sua teorização só ocorre no século XIX, com os trabalhos do filósofo alemão W. Dilthey.
Segundo as reflexões de Grumbrecht, dois importantes princípios definidos pelo pensamento moderno teriam dado origem a uma nova conformação do campo hermenêutico, como explica Alberti:
“Em primeiro lugar, a oposição sujeito-objeto, consolidada por Descartes: a res cogitans, o sujeito, separa-se da res extensa, o objeto, inclusive o corpo humano, havendo um privilégio claro da primeira sobre a segunda.[...] O segundo é aquele que se estabelece entre superfície e profundidade: cabe ao sujeito interpretar o mundo partindo da superfície em direção à profundidade. Se durante a Idade Média, o saber era finito e dado aos homens por Deus através da revelação, a partir da Renascença, toda relação com o mundo passa a ser feita na base da interpretação, que pressupõe a possibilidade permanente de aumento do saber, bem como a idéia do homem como produtor de conhecimento. Desde então, a superfície tem o valor de significante e a profundidade, o valor de significado -- justamente o significado atribuído ao mundo por um sujeito humano"(Alberti, 1996, p.6).
Assim de uma atividade de interpretação de textos a hermenêutica passa a ser no século XIX um princípio epistemológico para as Ciências Humanas, graças às reflexões do filósofo alemão W. Dilthey. 
Verbete
Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi professor de filosofia nas universidades de Basel (1866), Kiel (1868), Bresau (1871) e Berlim (de 1882 até 1905), tornando-se principalmente conhecido por buscar a especificidade das ciências humanas (Geisteswissenschaften) em relação às ciências da natureza (Naturwissenschaften). Sua maior contribuição para a filosofia foi a análise epistemológica das ciências humanas e da história em particular. A crítica da compreensão histórica lhe era particularmente relevante.
Fim do Verbete
Dilthey foi responsável pela diferenciação entre as “ciências do espírito” e “ciências da natureza”, sendo o historicismo o princípio epistemológico que definira o primeiro campo. O historicismo pautava-se no princípio de que o homem é um animal histórico e disso não escapa, esteja ele na posição de objeto ou de sujeito do conhecimento. Como desdobramento desse princípio Dithey delimitou mais outros três que caracterizariam a chamada “critica da razão histórica”, por ele apresentada em 1883.  Alberti apresenta os três princípios formulados por Dilthey: “1) todas as manifestações humanas são parte de um processo histórico e devem ser explicadas em termos históricos; 2) as diferentes épocas e os diferentes indivíduos só podem ser entendidos de seu ponto de vista específico, que deve ser considerado pelo historiador, e 3) o próprio historiador está limitado pelos horizontes de sua época” (Alberti, 1996, p.8)
O projeto de Dilthey ultrapassa, portanto, o domínio da história propriamente dita. Para ele, a hermenêutica é o fundamento das ciências humanas, porque, diversamente das ciências da natureza, as ciências humanas se consubstanciam com base na compreensão (das Verstehen), e não na explicação (das Erklären). A pergunta  que orienta suas reflexões é de cunho epistemológico: "Qual a natureza do ato de compreensão que fundamenta todo estudo do homem?”
A resposta a ela, como explica Alberti, vai ser dada através da elaboração da noção de historicidade das vivências humanas:
“Para compreender o homem, diz Dilthey, é necessário compreender nossa historicidade (Geschichtlichkeit), que não está à disposição nas categorias estáticas das ciências da natureza. Os pontos de partida e de chegada nas ciências humanas devem ser a vivência (Erlebnis) concreta, histórica e viva, e suas categorias devem ser dinâmicas e intrínsecas à vida, contrapondo-se às categorias estáticas, atemporais e abstratas das ciências da natureza. A importância da historicidade e da vivência se consuma na própria noção de compreensão: toda e qualquer frase abstrata só pode ser compreendida em função de sua "vivacidade" (Lebendigkeit), isto é, com base no entendimento hermenêutico, que é o procedimento fundamental para todas as operações das ciências humanas. Por essa razão, a análise da compreensão é a tarefa principal no estabelecimento das bases das ciências humanas” (Alberti, 1996, p.9)
Assim, conclui a autora, para Dilthey, uma disciplina pertenceria às ciências humanas apenas quando seus objetos se fazem acessíveis através da seguinte fórmula: vivência (Erlebnis), expressão (Ausdruck ) e compreensão (Verstehen).
No final do século XIX e mais acentuadamente no século XX, movimentos opostos ao campo hermenêutico passaram a ganhar terreno, constituindo o "pós-hermenêutico" -- assim chamado menos por ser uma "etapa" que sucede a hermenêutica do que por constituir um espaço de possibilidades de relação com o mundo fora da hermenêutica. Característico do pós-hermenêutico, ou, se não tanto, das crises do campo hermenêutico, seriam o desaparecimento do sujeito e o privilégio da superfície e do corpo, em detrimento, respectivamente, da profundidade e do espírito. Tais concepções podem ser identificadas com as perspectivas do pós-modernismo.
Do ponto de vista da historiografia atual, a relação entre história e hermenêutica vem contribuindo, como apresentamos na aula nº 14, para o desenvolvimento de estratégias metodológicas que, muitas vezes são confundidas com os recursos da produção de textos ficcionais. Isso porque, como reflete Alberti:
“compreender é a arte de reconstruir o pensamento de outrem; a necessidade de um conhecimento gramático, histórico e específico à matéria como requisito para nos colocarmos na posição de um leitor ou receptor contemporâneo ao texto que interpretamos, e finalmente a noção de que, entre o intérprete e o texto, há sempre um denominador comum, por menor que seja, sem o qual a interpretação seria impossível, de um lado, e de que, se entre os dois não houvesse nenhuma diferença, não haveria sequer necessidade de interpretação, de outro.” (Alberti, 1996, p.17)
É claro que um bom historiador ou um bom cientista social deve sempre estar atento à distância que o separa de seu objeto, e incluir a consciência dessa distância em sua interpretação. Para tanto, afirma Alberti, incorporando as reflexões do historiador alemão Koselleck (1985):
“o historiador faz uso de textos principalmente para chegar a uma realidade que está fora deles. Mais do que outro exegeta, ele tematiza a matéria externa ao texto, ainda que só consiga constituir sua realidade com meios lingüísticos. Os textos analisados pelo historiador, na medida em que, através de perguntas, se transformam em fontes, remetem sempre à história (Geschichte) que se quer conhecer. E escrever uma história sobre um período significa encontrar asserções que nunca puderam ser feitas naquele período. Desse modo, conclui Koselleck, se Historik engloba as condições de possíveis histórias, ela remete a processos de longa duração que não estão contidos em nenhum texto enquanto tal, mas, antes, provocam textos” (Alberti, 1996, p.18)
Boxe Explicativo
Para compreendermos as reflexões de Koselleck, será preciso, antes de mais nada, nos referirmos ao uso de três conceitos diferentes para os quais só temos, em português, a palavra história. À semelhança do que ocorre com história em português, Geschichte designa não apenas a disciplina da história, como também, em seu uso mais específico, adotado por Koselleck, os acontecimentos do passado. Já Historie é, nessa palestra, a ciência da Geschichte e a arte de sua apresentação ou narrativa. Historik , finalmente, é tida como uma ciência teórica, em contraposição à Historie empírica, e consiste no estudo das condições de possíveis histórias. Já posso adiantar que é o terreno da Historik que Koselleck identifica como não-hermenêutico.
Fim do Boxe explicativo
Assim, podemos dizer que "provocar textos" é o mesmo fazer emergir sentido nos documentos e pistas do passado. Ainda segundo Alberti, “ fazer história no sentido de procurar as condições do surgimento de possíveis histórias é descobrir o espaço extra-textual -- o contexto certamente -- que permite a constituição de textos. Podemos dizer que é apenas nesse momento, em que toma o texto como documento de algo, que o historiador se afasta da inserção lingüística -- porque o algo de que o texto é documento não é primordialmente lingüístico” (Alberti, 1996, p.18).
Boxe de atenção
Alberti segue as reflexões de Koselleck contidas na palestra proferida por ele em 1985, na Universidade Heildelberg, intitulada “História e hermenêutica”. No ano de 1996, em que o artigo de Alberti foi escrito, essa referência, apesar de estar em alemão, era o caminho mais seguro para incorporar-se a discussão sobre hermenêutica aos estudos históricos. A autora explica que a escolha das reflexões do teórico alemão se deve ao fato de que: “De um lado, Koselleck rende tributo à hermenêutica, reconhecendo sua relação intrínseca com a história; de outro, contudo, procura marcar fronteiras entre os dois campos na constituição de um terreno não-hermenêutico da história”.
Dez anos depois da publicação do texto de Alberti na Revista Estudos Históricos, foi traduzido para o português o livro de Koselleck, no qual apresenta e amplia as reflexões apresentadas por Alberti. Optei por manter a referência ao texto da palestra, pois foi através dele que a autora construiu a sua argumentação sobre os limites e possibilidades da relação entre hermenêutica e história.
É importante também chamar atenção para o fato de que já havíamos apresentado na Aula 14 a argumentação de Ricoeur sobre a hermenêutica e a sua relação com a história. Cabe esclarecer, em linhas bem gerais, que a principal diferença entre Koselleck (2006) e Ricoeur (1997), é justamente o aspecto ressaltado na citação apresentada acima. Ou seja, para Koselleck a história-processo não se confunde com a sua interpretação, possuindo uma existência autônoma e plural, enquanto para Ricoeur essa diferenciação não existe, pois os processos interpretativos compreendidos dentro do circulo hermenêutico – pré-figuração; configuração, reconfiguração – são partes integrantes da ação social e, portanto, histórica.
Fim do Boxe de atenção
3. Os procedimentos da análise histórica: entre compreender e explicar.
A oposição entre compreender e explicar já foi indicada no tópico anterior quando apresentei a proposta do filósofo alemão W. Dilthey, para uma crítica da razão histórica, segunda a qual a hermenêutica ganharia um estatuto epistemológico, ou seja, deixaria de ser uma mera interpretação de textos antigos e passaria a ser o princípio de cientificidade das ciências do espírito, nas quais sujeito e objeto compartilham da mesma natureza, a humana.
Ricoeur (1978) comenta que Dilthey, no seu célebre artigo sobre a origem da hermenêutica de 1900, queria fornecer a história-conhecimento uma validade comparável à das ciências da natureza, à era da filosofia positivista. Colocado nestes termos o problema era epistemológico tratava-se de elaborar uma crítica do conhecimento histórico, definindo-lhe os princípios nomológicos: lei do encadeamento interno do texto, lei do contexto, lei do meio ambiente geográfico, étnico, social, etc.
No entanto, Ricoeur chama atenção que os limites epistemológicos apresentados por Dilthey prendia-se aos documentos fixados pela escritura, somente uma província no campo mais vasto que se dedica a dimensão ontológica do sujeito na história. Portanto, segundo Ricoeur, “compreender é, para um ser finito, transportar-se para uma outra vida. Dessa forma, a compreensão histórica põe em jogo todos os paradoxos da historicidade: como um ser histórico pode compreender historicamente a história?” (Ricouer, 1978, p.8)
A resposta a essa questão não poderia ser dada no marco de uma análise histórica que defendesse a oposição entre compreensão e explicação, por identificar esse último procedimento com as categorias estáticas de um modelo de ciência natural ultrapassado.
O que a oposição entre compreender e explicar aponta é mais uma vez para qual o estatuto de conhecimento se atribui a história, o de ciência ou de arte. Creio que nas aulas anteriores já demos subsídios para o posicionamento em relação a esse debate, o que é importante ressaltar, nesse momento do nosso estudo, é que essa oposição é um falso problema, pois é perfeitamente possível na análise histórica compreender para então explicar. Vejamos como isso pode ser feito seguindo algumas pistas dadas por Marc Bloch, no seu trabalho clássico sobre o ofício do historiador (Bloch, 2001).
Boxe explicativo:
A tradução brasileira do livro de Marc Bloch foi feita com base na edição francesa de 1997, prefaciada pelo reconhecido historiador francês Jacques Le Goff. Nesse prefácio, Le Goff esclarece que o livro foi escrito durante o período em que Bloch estava preso pelos alemães por ter atuado na resistência francesa à ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial. Sem ter acesso à sua biblioteca e escrevendo com base em sua própria experiência, os manuscritos foram, após a morte do autor, organizados por seu amigo e companheiro de pesquisa e estudos, Lucien Febvre, tendo sido publicados pela primeira vez em 1949.
A edição com a qual trabalhamos nesta aula é uma edição atualizada e ampliada, em relação à edição portuguesa,da editora Europa – América, cujo título “Uma Introdução a História”, demasiado simplista, não dava conta do conteúdo e da proposta do texto. Esse texto, mesmo tendo sido escrito em condições precárias, ainda continua sendo um dos mais importantes trabalhos sobre a prática historiadora, seus impasses e possibilidades.
Fim do boxe explicativo
Logo na introdução, Marc Bloch já se posiciona no debate sobre a natureza do conhecimento histórico: “evitemos retirar de nossa ciência sua parte de poesia”. Ele não afirma que a história é arte, a história é literatura, ao contrário, “a história é a ciência dos homens no tempo” (p.55). Portanto, aquela que estuda as sociedades humanas no tempo, mas cujos métodos não poderiam reduzi-la a um conjunto de abstrações, a leis e estruturas.
Assim, Bloch defende o estatuto de cientificidade para a História, em sintonia com uma nova perspectiva de ciência que já se configurava no início do século XX. Sobre essa nova perspectiva  vale recuperar a reflexão do autor:
“Ora, nossa atmosfera mental não é mais a mesma. A teoria cinética dos gases, a mecânica einsteiniana, a teoria dos quanta alteraram profundamente a noção que ainda ontem qualquer um formava sobre a ciência. Não a diminuíram. Mas flexibilizaram. Com certeza, substituíram, em muitos pontos, o infinitamente provável, o rigorosamente mensurável pela noção da eterna relatividade da medida. [...]Estamos portanto agora bem melhor preparados para admitir que, mesmo sem se mostrar capaz de demonstrações euclidianas ou imutáveis leis de repetição, um conhecimento possa contudo pretender ao nome de científico. Aceitams muito mais facilmente fazer da certeza e do universalismo uma questão de grau. Não sentimos mais a obrigação de buscar impor a todos os objetos do conhecimento um modelo intelectual uniforme, inspirado nas ciências da natureza física, uma vez que até nelas esse gabarito deixou de ser integralmente aplicado. Não sabemos muito bem o que um dia serão as ciências do homem. Sabemos que para existirem – mesmo continuando, evidentemente, a obedecer às regras fundamentais da razão - , não precisarão renunciar à sua originalidade, nem ter vergonha dela” (Bloch, 2001, p.49).
A lucidez e clareza da afirmação, mesmo datada de há cerca de 60 anos, coloca a História num caminho, o do conhecimento cientificamente verificável. Entretanto, como Bloch orientava esse caminho? Na seqüência da sua obra, Bloch apresenta um programa de trabalho orientado por três momentos: observação, a crítica e análise histórica.
O primeiro momento é o da observação histórica, sempre mediada por vestígios ou pistas que as sociedades deixaram no rastro dos tempos.Os vestígios tomados pelo historiador como testemunhos de uma época podem ser divididos em duas categorias: a dos testemunhos voluntários e involuntários.
Na primeira categoria estariam inseridos os relatos deliberadamente destinados à informação dos leitores, por exemplo: os textos dos historiadores clássicos, como Heródoto; as narrativas de cronistas medievais, os discursos presidenciais etc. Na segunda, se incluem  todo um conjunto de registros das mais variadas procedências que dão prova de algum tipo de experiência social, independente de ter sido feita para ser utilizada como testemunho histórico (por exemplo:cartas e diários...).
Essa diferenciação entre os tipos de testemunho foi feita em função da necessidade de se considerar que não somente os relatos escritos deveriam ser tomados como documentos históricos, mas todo também, a cultura material, as artes visuais, etc. Entretanto, a sua utilização pelo historiador não deve pressupor uma diferenciação muito radical, pois mesmo os testemunhos indiretos não estão livres de falsificação e da fabricação de mentiras, como Bloch deixa entrever em seu texto:
“Não é que os documentos desse gênero (testemunhos involuntários) sejam, mais que os outros (os testemunhos voluntários), isentos de erros ou de mentira. Não faltam falsas bulas, e, assim, como todos os relatórios de embaixadores, nenhuma carta de negócios  diz a verdade. Mas a deformação aqui, a supor que exista, pelo menos não foi concebida especialmente em intenção da posteridade. Acima de tudo, esses indícios que, sem premeditação, o passado deixa cair ao longo de sua estrada não apenas nos permitem suplementar esses relatos (os testemunhos voluntários), quando estes apresentam lacunas, ou controlá-los, caso a sua veracidade seja suspeita; eles afastam  de nossos estudos um perigo mais mortal que a ignorância ou inexatidão: o de uma irremediável esclerose” (Bloch, 2001, p.77)
Os testemunhos voluntários, por sua vez, numa abordagem crítica da história valem não somente pelo que dizem, mas da forma como dizem, do suporte que utilizam-se para dizer: “do mesmo modo, até nos testemunhos mais resolutamente voluntários, o que os textos nos dizem expressamente deixou hoje em dia de ser objeto predileto de nossa anteção. Apegamo-nos geralmente com muito mais ardor ao que ele nos deixa entrever, sem haver pretendido dizê-lo” (Bloch, 2001, p.78).
Essa ampliação da noção de testemunho, tem como desdobramento uma outra característica da observação histórica, a de que não basta organizar os documentos para que deles a História surja naturalmente, “pois os textos ou documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente mais claros e complacentes, não falam senão quando sabemos interrogá-lo” (Bloch, 2001, p.79). Portanto, a observação histórica implica no reconhecimento das condições sociais de produção da evidência, implica que o historiador compreenda a historicidade do testemunho com o qual está trabalhando.
Além disso, seria uma grande ilusão achar que cada problema histórico corresponde a um tipo único de documento e que a História tivesse em si mesma, todas as condições de responder as perguntas levantadas.
Dessas duas constatações, resultam duas importantes características da pesquisa histórica hoje: intertextualidade e interdisciplinaridade.
A primeira diz respeito ao desenvolvimento de estratégias de análise dos testemunhos, compreendidos como textos escritos, visuais, arquitetônicos, etc., que levem em conta a sua inter-relação. As tipologias podem ser variadas bem como o uso de uma abordagem qualitativa ou quantitativa, quando se recorre a fontes seriadas, entretanto, não se pode perder do horizonte que o objetivo da análise do testemunho (voluntário ou involuntário) é explicar a sociedade que o gerou.
A segunda diz respeito aos recursos de elaboração dessa explicação, portanto, não basta simplesmente descrever que tais e tais testemunhos foram produzidos em tais e tais condições. É fundamental que as condições de produção do testemunho sejam explicadas a luz de uma teoria sobre o social, proveniente das ciências sociais (esse tema será abordado na aula nº 16).
Assim, na definição de observação histórica Bloch deixa claro que não há compreensão do passado sem a explicação de como essa compreensão foi gerada. Tal perspectiva é aprofundada pela crítica histórica que, ao superar os limites da erudição tradicional, busca identificar nos testemunhos a condição social de sua produção. Assim, não é suficiente saber se o documento é falso ou verdadeiro, mas acima de tudo compreender as condições históricas de produção da mentira.
Por fim, o terceiro item do seu programa de ofício aquele denominado análise histórica, a questão da diferença entre julgar e compreender é colocada. No prefácio a obra Le Goff esclarece este ponto:
“Marc Bloch, que detesta os historiadores que ‘julgam’ em lugar de compreender, não deixa por isso de enraizar mais profundamente a história na verdade e na moral. A ciência histórica se consuma na ética. A história deve ser verdade; [....]. Nossa época, desesperadamente em busca de uma nova ética, deve admitir o historiador entre aqueles que procuram a verdade e a justiça não fora do tempo, mas no tempo” (Bloch, 2001, p.30)
Assim, o objetivo da análise histórica, iniciado depois da observação e da crítica, seria o de compreender, não o de julgar. A noção de compreensão em Bloch, não sugere uma passividade descritiva, com a qual contemporaneamente passou a ser associada. Ao contrário, explica que na pesquisa o historiador escolhe e separa os testemunhos com os quais vai trabalhar, portanto atua ativamente na organização racional da matéria cuja a receptividade passiva só levaria a negar as diferenças temporais e, portanto, a própria História.
A análise histórica, segundo Bloch, tem como horizonte a história “total” ou “global”, pois se dedica a referenciar ligações comuns a um grande número de fenômenos sociais. Entretanto, essa totalidade não implica numa história geral, numa abordagem que rejeita o contingente e o específico, em busca sempre do que é recorrente e estrutural. Nada mais legítimo, dentro da perspectiva de Bloch, “do que centrar a o estudo de uma sociedade em um dos seus aspectos particulares, ou, melhor ainda, em um dos seus problemas precisos que levantam este ou aquele desses aspectos: crença, economia, estrutura das classes ou grupos, crises políticas” (Bloch, 2001, p.150-151). Assim, o que é particular ganha densidade em relação à totalidade a qual pertence.
Por fim, a reflexão de Bloch, interrompida por sua morte no campo de concentração orienta para o estudo da noção de causa ou ainda sobre a explicação em história. Sobre este ponto, Le Goff no seu prefácio chama atenção a respeito das importantes contribuições da obra inacabada:
“Em primeiro lugar, um novo protesto contra ‘o positivismo’, que ‘pretendeu eliminar da ciência a idéia de causa’; mas também a condenação da tentativa de redução do problema das causas em história a um problema de motivos e a recusa da ‘banal psicologia’. [...] Depois, a designação de um novo ídolo a ser banido da problemática do historiador: ‘a superstição da causa única’. A condenação é inapelável: ‘preconceito do senso comum, postulado de lógico, um tique de magistrado instrutor, o monismo da causa, para a explicação histórica, não é senão um estorvo’. A vida, portanto, a história, é múltipla em suas estruturas, em suas causas” (Bloch, 2001, p.31-32)
Ao final da obra a frase não é finalizada, mas sua conclusão é memorável: “Resumindo tudo, as causas, em história como em outros domínios, não são postuladas. São buscadas” (Bloch, 2001, p.159)
Atividade 2
O livro de Marc Bloch trabalhado nesse último tópico tem como característica de composição, o uso de muitos exemplos, a partir dos quais o historiador fundamenta sua argumentação. Isso faz o livro tão interessante e ao mesmo tempo nos permite compreender com exemplos do trabalho de pesquisa histórica a sua reflexão. Um dos exemplos dados por Bloch é o seguinte:
“Nos muros de certas cidadelas sírias, erguidas alguns milênios antes de Cristo, os arqueólogos descobriram presas em pleno entulho, cerâmicas cheias de esqueletos de crianças. Como não se poderia supor que essas ossadas estivessem ali por acaso, estamos muito evidentemente diante de restos de sacrifícios humanos, realizados no próprio momento da construção e a ela ligados. Sobre as crenças que se exprimem através desses ritos, seremos provavelmente obrigados a nos remeter a testemunhos  da época, caso existam, ou proceder por analogia, com a ajuda de outros testemunhos. Uma fé que não compartilhamos, como então conhecê-la senão através das palavras de outro? É esse o caso de todos os fenômenos de consciência, a partir do momento em que são estranhos a nós. Quanto ao fato mesmo do sacrifício, em contrapartida, nossa posição é bem diferente. Decerto não o captamos, propriamente falando, de um relance absolutamente imediato. Mas o raciocínio muito simples que, ao excluir qualquer outra possibilidade de explicação nos permite passar do objeto verdadeiramente constatado ao fato cuja prova nos traz [...] Nesse sentido, nosso conhecimento das imolações murais na antiga Síria nada tem de indireto”
Quais são as possibilidades de análise histórica que esse exemplo sugere?
15 linhas
Voltemos ao exemplo dado na introdução da aula o livro de Keila Grinberg sobre a escrava Liberata que conseguiu a liberdade por um acordo judicial. O caso, que numa abordagem mais tradicional da história da escravidão do Brasil, seria considerado um desvio da norma, na qual todos os escravos seriam considerados objetos de propriedade de um senhor.
No entanto, Keila Grinberg em sua pesquisa consegue superar esse limite de uma interpretação consolidade. Observa que a luz das regras do direito vigentes no Brasil do século XIX haviam brechas para um conjunto significativo de ações de liberdade. Sua observação histórica é baseada em documentos de diferentes tipos – fontes seriais, tais como processos de ação de liberdade, encontrados no Arquivo Nacional; mas também compêndios de direito da época e a legislação que regia as normas de Direito no Império.
Tudo isso apoiada numa crítica histórica, que implicou na leitura atenta da documentação, portanto além da análise serial que quantificou as ações de liberdade para evidenciar sua presença em termos numéricos, a historiadora também tentou compreender a lógica da sua produção. Quem apelava, por que como, quem eram os sujeitos que atuavam na trama documental, transformando sua pesquisa em uma verdadeira investigação, com nomes e endereços.
O que mudou nesse tipo de análise em relação às anteriores? A descoberta de novas fontes, sim, mas não somente isso. Mudou a atitude do presente em relação ao passado, mudou a forma de compreender o papel do escravo como sujeito ativo na história, com expectativas, vontades e consciência de sua condição e das formas de transformá-la. Mudaram as perguntas com as quais a História passou a empreender sua observação e análise. Por que mudou?
A resposta a essa pergunta mais uma vez pode ser encontrada no texto de Bloch: “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa” (Bloch, 2001, p.75)
Atividade 3
Na introdução ou primeiro capítulo dos livros didáticos de História, em geral, são apresentados os métodos de história, o ofício do historiador ou algo parecido. Quando não há um capítulo especificamente para este tema, fica ao encargo da apresentação do livro apresentar o que os autores entendem por História.
Espero que você não tenha se descartado do seu livro do ensino médio, pois ele é muito útil para o nosso trabalho em teoria. A proposta dessa atividade final é apresentar o capítulo do seu livro didático voltado para a apresentação dos métodos e procedimentos da pesquisa histórica e, na seqüência, avaliar se os princípios são aplicados na produção do conhecimento histórico escolar.
20 linhas
Resumo:
No século XIX, os pressupostos de um método de caráter eminentemente empírico serviram de base para a organização da disciplina histórica, em termos institucionais. Neste século, foram os historiadores alemães – em especial Leopold Von Ranke – e posteriormente os membros da Escola Metódica Francesa, os responsáveis pela formalização do método crítico aplicado aos documentos históricos.
O método histórico renovado ao longo do século XX se organiza segundo as seguintes etapas: delimitação do tema e da as hipóteses de trabalho, explicações causais e fazemos generalizações apoiadas, sobretudo, nos marcos teóricos e no conhecimento dos códigos pertinentes às mensagens que são as fontes históricas, bem como no conhecimento de outros fatos e processos de comparação.
A etapa intermediária consiste no estabelecimento de fatos e processos históricos que interessam especificamente a investigação através da delimitação das fontes históricas Sendo assim, toda a fase prévia relativa ao levantamento nos arquivos, sistematização em fichas e bancos de dados, enfim organização dos instrumentos de pesquisa, prepara o campo de trabalho para a etapa intermediária, que consiste na elaboração de um conjunto de operações analíticas realizadas mediante ao uso das fontes. É neste momento que surgem as condições para se produzir conhecimentos novos resultantes da pesquisa concreta de que se trate, através do processamento do material investigado. As construções teóricas de todo o tipo carecem de valor se em nenhum momento não são submetidas à prova das evidências históricas.
A interpretação histórica tem nos estudos sobre hermenêutica uma importante contribuição. A história desse campo de conhecimento nos permite recuperar a diferenciação entre compreensão e explicação, no que pese a sua afinidade na produção historiográfica hoje.
O trabalho de pesquisa histórica consiste nos procedimentos de observação, crítica e análise das evidências do passado a luz dos questionamentos do presente.
Bibliografia.
Bloch, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
Carlo Ginzburg, O Fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Koselleck, Reinhart. Futuro/passado: contribuição a semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora PUC-Rio, 2006
Lowenthal, David. “Como conhecemos o passado”, Projeto-História, São Paulo, nº 17, p.1-195, novembro/98.
Ricouer, P.  Interpretação e ideologias, Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1977.
Ricouer, Paul. Tempo e Narrativa – Tomo III, São Paulo: Papirus Editora, 1997
Ricouer, Paul. O conflito das interpretações, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1978
Verena, Alberti.  A existência na história: revelações e riscos da hermenêutica”, Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 17, 1996  (http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/184.pdf)
Sites na Internet.

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