sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Aula 4. História e ciências sociais.


UFF/CEG/ICHF

Métodos e Técnicas de Pesquisa em História.
Profª.: Ana Maria Mauad.
Aula 4.
História e ciências sociais.
META DA AULA
Nesta aula, vamos apresentar a relação entre História e Ciências Sociais, evidenciando o papel das teorias sociais na elaboração do conhecimento histórico
OBJETIVOS
Após o estudo do conteúdo desta aula, você deverá ser  capaz de:
1.       Reconhecer as relações entre História e Ciências Sociais;
2.        Identificar o papel das teorias sociais na produção do conhecimento histórico;
3.       Caracterizar o significado de interdisciplinaridade para a produção historiográfica hoje.
Introdução:
Como vimos na aula passada, não é de hoje que a história proclamou sua independência em relação à dominação dos textos escritos e dos testemunhos voluntários. A necessidade por parte dos historiadores em problematizar temas bem pouco trabalhados pela historiografia tradicional, levou-os a ampliar seu universo de fontes, bem como a desenvolver abordagens pouco convencionais à medida que se aproximava das demais ciências sociais em busca de uma “história total”.
Novos temas passaram a fazer parte do elenco de objetos do historiador, dentre eles a vida privada, o quotidiano, as relações interpessoais etc. Uma micro história que, para ser contada não necessita perder a dimensão macro, a dimensão social, totalizadora das relações sociais.
Nesse contexto, uma história social da família, da criança, do casamento, da morte etc, passou a ser contada, demandando, para tanto, muito mais informações que os inventários, testamentos, curatela de menores, enfim, toda uma documentação cartorial poderia oferecer. A tradição oral, os diários íntimos, a iconografia e a literatura, apresentaram-se como fontes históricas de excelência das anteriores, mas que demandavam do historiador uma habilidade de interpretação, com qual não estava aparelhado. Tornou-se imprescindível que as antigas fronteiras e os limites tradicionais fossem superados.
Ao historiador exigiu-se que fosse também antropólogo, sociólogo, semiólogo e um excelente detetive, para aprender a relativizar, desvendar redes sociais, compreender linguagens, decodificar sistemas de signos e decifrar vestígios, não perdendo, jamais, a visão do conjunto.
Foi no século XIX que as Ciências Sociais e a História se organizaram como disciplinas acadêmicas com espaços institucionalizados nas universidades, escolas e academias. Esse processo envolveu um debate acirrado em relação ao modelo de ciência com o qual as jovens ciências humanas estavam se mirando. Todo o esforço do filósofo alemão W. Dilthey, referido na Aula 15, bem como de outros filósofos, foi o de buscar um estatuto para as ciências do espírito (como eram chamadas as Ciências Humanas então) que as diferenciasse das Ciências Naturais, mas sem perder o princípio geral de um pensamento e métodos científicos comuns a todas as disciplinas que queriam ser chamadas de Ciências.
Assim, as resposta as questões relacionadas a possibilidade de existir uma ciência do homem e da sociedade, nunca formaram um coro uníssono. Tampouco a relação que a História foi se estabelecendo com esse campo de debates, dependeu em muito do tipo de comprometimento  ético que a comunidade de historiadores estabeleceu em relação as suas práticas.
De toda forma, como já vimos anteriormente, hoje não mais se sustenta a idéia de um princípio único de ciência, tanto no campo de estudo da física, das matemáticas, da biologia, as chamadas ciências da natureza ou ainda ciências duras, quanto nas reconhecidas Ciências Humanas, ou ainda, ciências “softs”. No que pese a defesa por um princípio de inter-relação entre as áreas de estudo que defenda uma ação sobre o mundo mais coordenada e que assim deixe de condenar esse mesmo mundo a um fim, mais próximo do que o desejado. Um grande problema que não possui uma única solução!
Na aula de hoje vamos estudar como a relação entre História e Ciências Sociais foi sendo construída ao longo do século XX, a forma pela qual o conhecimento histórico apóia sua análise das sociedades passadas em teorias sociais e identificar o sentido e a função do princípio de interdisciplinaridade.
1. História e Ciências Sociais: um panorama.
Em cada contexto, a História se reveste de um significado específico, daí a relevância de se estudar a História da História ( isto é, como a disciplina foi se constituindo ao longo do tempo como campo de saber), estabelecer as principiais correntes que compõem o campo da  prática historiadora, compreender como esta prática está vinculada às disputas de poder em torno do controle da memória social e que, acima de tudo, uma interpretação histórica que rejeita o conflito e, tendendo a ver as sociedades como totalidades harmônicas, está longe de ser uma disciplina crítica e transformadora.
Além disso, é fundamental avaliar-se, para termos em conta o estado atual da “oficina da História”, a relação que esta disciplina estabelece com as Ciências Sociais, a saber: Antropologia, Sociologia, Ciência Política e Economia. Além dos contatos mais recentes e menos tradicionais, tais como com a Literatura, a Lingüística, a Semiologia e a Semiótica, e os já consolidados como com a Geografia  e a História da Arte.
A relação que a História estabelece com essas disciplinas também vem se modificando ao longo do tempo e, de diferentes maneiras, em contextos acadêmicos distintos. Vale lembrar que o século XX superou a noção de ciências auxiliares da História, reforçando  esse relacionamento interdisciplinar no sentido de romper com a perspectiva imperialista da história e situar as possibilidades de contato no marco de uma discussão de caráter teórico-metodológico. Daí, atualmente, todo o debate sobre o campo historiográfico centrar-se em propostas transdisciplinares, ou seja, mais do que uma mera colaboração entre disciplinas, ou um trabalho em equipe, o que se discute é a capacidade da História de teorizar sobre seus objetos de estudo e operá-los a partir de metodologias coordenadas.  Um exemplo desse tipo de abordagem seria a análise das relações sociais a partir do estudo das redes de sociabilidade tal como a Antropologia propõe, utilizando-se para tanto de um aporte semiótico para se avaliarem os códigos de comportamento e as representações sociais que caracterizam a distinção social entre os diferentes grupos.
Pontuar temporalmente a dinâmica desse relacionamento de disciplinas é fundamental para entender as dinâmicas da escrita da história e da prática historiadora atual.
1.1) Anos 1920-1930 – Surgimento do grupo dos Annales na figura de Marc Bloch e Lucien Febvre, este último geógrafo de formação. No contexto de surgimento desta nova abordagem histórica a influência da sociologia de Emile Durkheim e da abordagem estruturalista de George Dumézil. No Brasil, a escola história manteve-se isolada deste tipo de interação limitada ao IHGB, no entanto fora do campo dos historiadores tradicionais, a escrita da história se renovava com os escritos de Gilberto Freyre (antropólogo); Sérgio Buarque de Holanda (historiador) e Caio Prado Junior (historiador), buscando cada qual a sua maneira escrever uma história total das relações sociais.
1.2) Anos 1940/1950 – a historiografia francesa, sob a liderança de Fernand Braudel, reaproxima-se da geografia e busca compreender a lógica das sociedades no marco da sua espacialidade e da longa duração. Sofistica-se a discussão sobre o tempo na história, rompendo-se com uma perspectiva linear do tempo. Neste período, a história se aproxima das Ciências Sociais, através dos “area studies”, grupos de cooperação disciplinar em torno de certos temas. No Brasil, a história acadêmica passa a sofrer forte influência da sociologia histórica da escola paulista, encabeçada pelo sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995).
Ainda nos anos 1950, fora do contexto francês, zona de influência direta da cultura letrada brasileira, um grupo de historiadores progressistas, ligados ao Partido Comunista Inglês e associados aos movimentos sociais na Inglaterra, organizam as history work shops. Estes eram grupos de trabalho comunitário voltados para uma perspectiva de história fora do circuito da elite, uma história que “vinha de baixo”. Este grupo de historiadores ficou conhecido como a New left ou o grupo do marxismo britânico – dentre eles: E.P. Thompson, Eric Hobsbawn, Christopher Hill, entre outros.
1.3) Anos 1960/1970 – anos de importantes transformações sociais que marcaram de forma decisiva a escrita e a prática historiadora. A história se engaja nos movimentos sociais e amplia seu universo de análise, sendo a abordagem histórica adotada amplamente por sociólogos, cientistas políticos e filósofos. No Brasil, escreve-se história mais nos centros de Ciências Sociais do que nas faculdades de História. A abordagem histórica, bem como a pesquisa histórica, começa a ser discutida em termos da reformulação do campo historiográfico, movimento que se complementaria nos anos subseqüentes.
1.4) Anos 1980/1990 – período marcado pelo revigoramento da escrita da história que passa a se utilizar de reflexões teóricas das demais disciplinas das ciências humanas no sentido de elaborar, de maneira mais adequada, o tratamento sobre os novos objetos que se colocam como relevantes. Portanto é um período que se caracteriza pela consolidação das novas abordagens, novos objetos e novos problemas.
Ao mesmo tempo, os anos noventa, principalmente a sua segunda metade o o início do século XXI foi, gradualmente, sendo dominado pelas discussões em torno da crise dos paradigmas: iluminista X pós-modernos; racionalistas X irracionalistas, etc. Debates que incluíam questões teóricas tais como: a morte dos sujeitos sociais/coletivos; o fim dos modelos de explicação holisticas; redefinição das escalas dos objetos de estudo da história; o fim das metanarrativas e a predomínio  de uma epistemologia da história de base sensivelmente idealista, pautada na possibilidade de múltiplas narrativas históricas, igualmente válidas, devido a perda na crença nos critérios de validação racionais.
Verbetes:
Lucien Febvre – Nascido em Nancy a 22 de julho de 1878 e falecido em  Saint-Amour a 11 de Setembro de 1956, foi historiador francês, crítico literário e co-fundador da chamada "Escola dos Annales”, juntamente com Marc Bloch. Seu trabalho é reconhecido como precursor no campo dos estudos sobre mentalidades coletivas que deu origem ao campo atual da história cultural.
Emile Durkheimnascido na cidade francesa de Épinal em  15 de abril de 1858, e falecido em  Paris, em 15 de novembro de 1917, é considerado um dos pais da sociologia moderna. Durkheim foi o fundador da escola francesa de sociologia, posterior a Marx, que combinava a pesquisa empírica com a teoria sociológica. É reconhecido amplamente por ter teorizado sobre os processos de ação social e pelo conceito da coesão social.
George Dumézil – nascido em Paris em 1898 e falecido na mesma cidade em 11 de outubro de 1986, é considerado um dos importantes nomes dos estudos sobre a língua e a mitologia antigas. Suas descobertas sobre a relação estrutural entre língua e representação mítica dos povos indo-europeus foram de grande influência para os estudos sobre mentalidades da Escola dos Annales.
Gilberto Freyre – nascido no Recife em 15 de março de 1900 e falecido em 8 de julho de 1987, é considerado, pelo crítico literário Antonio Candido juntamente com Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Junior, um dos pais fundadores da historiografia crítica brasileira. Sua obra aborda as matrizes culturais da sociedade brasileira, explorando com prosa fina, estilo leve e uma variedade significativa de fontes, dentre as quais relatos orais, o passado colonial, os modos e costumes da sociedade imperial. Hoje, reabilitado pela História Cultural no Brasil, é considerado um dos precursores na compreensão das matrizes culturais da sociedade brasileira.
Sérgio Buarque de Holanda  - Nascido em São Paulo a 11 de julho de 1902 e falecido na mesma cidade a 24 de abril de 1982, foi um dos mais importantes historiadores brasileiros. Autor de obras referenciais para a historiografia brasileira, dentre as quais se destaca o livro  “Raízes do Brasil” (1936). Sua vida e obra foram tema de documentário dirigido pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos em 2006.
Caio da Silva Prado Júnior – nascido em São Paulo a 11 de fevereiro de 1907 e falecido também em  São Paulo a 23 de novembro de 1990, foi um historiador, geógrafo, escritor, político e editor brasileiro. As suas obras inauguraram, no país, uma tradição historiográfica identificada com o marxismo, buscando uma explicação diferenciada da sociedade colonial brasileira.
Fim dos verbetes.
Unidade e diversidade das ciências do homem, a propósito da contribuição de Fernand Braudel
Num instigante texto, publicado em fins dos anos 1950, o historiador francês Fernand Braudel, avaliou o relacionamento entre as ciências do homem, destacando as dificuldades de estabelecer uma disciplina unificadora do conhecimento social, apesar do campo comum de suas reflexões – as sociedades humanas. Por outro lado, o ator destaca a necessidade de se estabelecer uma intersubjetividade possível com vistas a dar conta da natureza complexa dos objetos de estudo das Ciências do Homem.
Verbete
Fernand Braudel  - nascindo na cidade francesa de Luméville-en-Ornois, em 24 de agosto de 1902, e falecido em Cluses, a 27 de novembro de 1985, foi historiador e um dos mais importantes representantes da chamada  "Escola dos Annales". Editou a revista dos Annales, sendo responsável por sua revitalização no pós-Segunda Guerra Mundial.
Foi também o responsável pela introdução do conceito de estrutura em história e pela diferenciação do tempo histórico em três dimensões: a curta duração, a média duração e a longa duração. Seus estudos sobre capitalismo e civilização material são importante refêrencia para a aproximação entre História e Geografia.
Fim do verbete
Esse texto pontua questões que ainda hoje não perderam a sua atualidade e nos permitem identificar as principais questões que orientam a relação entre história e ciências sociais.
Boxe explicativo.
A escolha por trabalhar com textos mais antigos e datar esse material é uma opção didática. Isso porque, como vimos, a História é uma ciência em construção; portanto, as idéias e conceitos com os quais trabalhamos hoje possuem uma trajetória que é importante que seja trabalhada e apresentada em termos de contribuição e atualidade.
Os textos e trabalhos em História devem dialogar com as tendências  historiográficas que   orientam sua perspectiva de estudo. Assim, sempre que possível, recorremos aos chamados textos clássicos ou de referência para pontuarmos as posições dentro do campo historiográfico.
Fim do boxe explicativo
Em linhas gerais, podemos organizar a contribuição de Fernand Braudel em quatro grandes temas: a questão da existência de um objeto comum às ciências humanas; o problema da irredutibilidade das ciências humanas entre si; o uso de modelos e tipificações em Ciências Sociais; e, por fim, o posicionamento contra a especialização extremada e em prol da cooperação necessária .
Sobre o primeiro aspecto Braudel chama atenção para o fato de que, apesar de todas as Ciências Humanas se interessarem por uma paisagem única e comum, a das ações passadas, presentes e futuras do homem, existe uma grande dificuldade em estabelecer um trabalho coordenado. Isso porque “toda a ciência social é imperialista, mesmo quando nega sê-lo; tende a apresentar as suas conclusões como uma visão global do homem” (Braudel, 1986, p. 136)
Na perspectiva desse autor, o observatório ideal das ciências humanas seria um campo de conhecimento no qual o espaço de diálogo pudesse ser criado, sem comprometer a autonomia de cada uma delas. Esse papel Braudel atribuía à História, “sim, a História presta-se a semelhantes diálogos. Está pouco estruturada, aberta às ciências vizinhas” (Braudel, 1986, p. 137).
Entretanto, Braudel reconhece que, no momento em que escreve, essa unidade em torno da História estava longe de ser uma unanimidade, até mesmo entre os historiadores: “também nós, os historiadores, vemos a nossa maneira (que não é a correta) e com evidente atraso as nossas ciências vizinhas. Desta forma, de uma ciência para outra contígua, estabelece-se um clima de incompreensão. Na realidade, um conhecimento eficaz das diversas investigações realizadas no seio de cada disciplina exigiria uma grande familiaridade, uma participação ativa, o abandono de preconceitos e hábitos. É pedir muito. Não bastaria, com efeito, para alcançar este objetivo, lançar-se momentaneamente nestas ou naquelas investigações de vanguarda, quer sejam de sociologia, quer de economia política, mas impor-se-ia observar como estas investigações se incluem num conjunto e indicam os movimentos novos deste conjunto, coisa que não está ao alcance de todos” (Braudel, 1986, p. 138).
O comentário de Braudel se desdobra na demanda por uma atenção maior às propostas das demais disciplinas e à efetiva construção de uma linguagem comum que oriente o debate interdisciplinar. No momento no qual escreve, início dos anos 1960, ainda sob o efeito do debate com a Antropologia de Levi Strauss, Braudel vai eleger o uso de modelos e tipificações como ponte entre a História e as Ciências Sociais.
Assim, o usos de modelos para explicar numa perspectiva totalizante as sociedades humanas no tempo, aponta para a possibilidade da linguagem comum antes indicada, bem como orientaria a abordagem histórica rumo ao estudo das regularidades e da tipificação, incorporando a essa perspectiva o estudo das particularidades. Essa nova orientação estava claramente influenciada por uma perspectiva de valorização dos princípios científicos sem, no entanto, desconsiderar a sua dificuldade, como aponta Braudel:
“Mas o historiador que se enfrenta com um modelo, compraz-se sempre em devolvê-lo ás contingências, em fazê-lo flutuar, tal como um barco nas águas particulares do tempo. [...] Mas ao proceder assim, o historiador destrói continuamente os benefícios da ‘tipficação’, desmonta o barco. Só voltaria à ordem se reconstruísse este ou outro barco, ou se, desta vez na linha da história, repusesse os diferentes ‘modelos’ identificados nas suas singularidades, para as explicar mais tarde, a todos, pela sua própria sucessão. [....] o nosso primeiro cuidado como historiadores consistirá em particularizar o modelo, em desmontar mecanismos para os verificar e, sobretudo, os complicar à vontade para os devolver a uma vida diversa e particular, os abstrair a uma simplificação científica. Mas, depois, que vantagem nos atrevermos a voltar ao modelo, ou aos diferentes modelos, para descobrri a sua evolução, se evolução houvesse? Não vamos mais longe; a demonstração está feita: o modelo navega seguramente, através de todas as ciências do homem, co resultados positivos, e até por aquelas que, a priori, não se lhe mostram favoráveis” (Braudel, 1986, p. 141).
Boxe de atenção
O uso de modelos em História varia de acordo com a perspectiva teórica com a qual se trabalha. Nas aulas anteriores, você estudou Marx e Weber, dois importantes pensadores que desenvolveram abordagens nas quais o uso de modelos ocupava um papel central. No caso de Marx, os chamados modos de produção, e de Weber, os tipos ideais, cada um concorrendo para uma explicação diferenciada da sociedade. Enquanto o primeiro valorizava a perspectiva do conflito e da luta de interesses dentre os grupos sociais, o segundo se apoiava num modelo que valorizava a função social de cada grupo social na dinâmica histórica.
Em história, o uso de conceitos advindos das ciências sociais, mas devidamente articulado a uma perspectiva histórica,  tem como objetivo explicar a dinâmica das relações sociais passadas. Nesse caso, os modelos são muito mais um conjunto de conceitos explicativos ancorados na pesquisa de fontes do que, propriamente, a totalidade passada recuperada conceitualmente.
Portanto, quando utilizamos a noção de sociedade escravista, estamos nos baseando num modelo de explicação cuja eficácia explicativa depende da sua associação a uma dimensão temporal específica. Assim, existe uma sociedade escravista na antiguidade e outra nos tempos modernos, a diferença entre ambas deixa claro que um mesmo conceito ou modelo de explicação ganha significados diversos de acordo com a sua referência temporal.
Fim do boxe de atenção
Braudel conclui suas reflexões apontando para a necessidade de criar espaços efetivos de cooperação  acadêmica, incluindo-se aí uma perspectiva institucional, através de departamentos interdisciplinares, à maneira das universidades norte-americanas  e das associações profissionais. Essas iniciativas, segundo o autor, evitariam a especialização extrema, bastante prejudicial ao desenvolvimento das ciências humanas.
Vale lembrar mais uma vez que Braudel escreveu há cerca de quarenta anos; de lá para cá, o campo das ciências humanas veio incorporando, através da consolidação de associações profissionais, da regularidade de simpósios e congressos nacionais e internacionais, bem como pela publicação regular de periódicos, um espaço de sociabilidade acadêmica. Dentre os quais, no Brasil se destaca a ANPUH, Associação Nacional de História.
Boxe explicativo
ANPUH – “Em 19 de outubro de 1961 foi fundada, na cidade de Marília, estado de São Paulo, a Associação Nacional dos Professores Universitários de História, ANPUH. A entidade trazia na sua fundação a aspiração da profissionalização do ensino e da pesquisa na área de história, opondo-se de certa forma à tradição de uma historiografia não- acadêmica e autodidata ainda amplamente majoritária à época.
Atuando desde seu aparecimento no ambiente profissional da graduação e da pós-graduação em história, a ANPUH foi aos poucos ampliando sua base de associados, passando a incluir professores dos ensinos fundamental e médio e, mais recentemente, profissionais atuantes nos arquivos públicos e privados, e em instituições de patrimônio e memória espalhadas por todo o país. O quadro atual de associados da ANPUH reflete a diversidade de espaços de trabalho hoje ocupados pelos historiadores em nossa sociedade. A abertura da entidade ao conjunto dos profissionais de história levou também à mudança do nome que, a partir de 1993, passou a se chamar Associação Nacional de História, preservando-se, contudo o acrônimo que a identifica há mais de 40 anos.
A cada dois anos, a ANPUH realiza o Simpósio Nacional de História, o maior e mais importante evento da área de história no país e na América Latina. No intervalo entre dois simpósios nacionais, as Seções Regionais organizam seus encontros estaduais”
Fim do boxe
Nesses espaços, mesmo sem superar as fronteiras do conhecimento, tem-se avançado na discussão sobre as práticas interdisciplinares e transdisciplinares, como veremos na terceira parte desta aula.
2. História e teoria social
O historiador inglês Peter Burke, no prefácio do seu livro “História e teoria social” (2000), apresenta os caminhos que o levaram a organizar uma obra, cujo objetivo central era o de apresentar as relações entre a História e as Ciências Sociais. Essa reflexão sugere alguns aspectos importantes para nos orientarmos dentro do campo. Vejamos a contribuição do historiador inglês:
“Para ver o que ocorre em todas as áreas, o autor não consegue evitar o ponto de vista pessoal. A perspectiva a partir da qual o presente ensaio foi elaborado é a mesma que o falecido Fernand Braudel costumava chamar de “história total” – não uma análise do passado que cuide de todos os pormenores, mas sim que ressalte as relações entre campos distintos da empresa humana” (Burke, 2000, p.8).
Mais adiante, explica que a escolha do título envolveu também uma percepção das mudanças dentro do campo de trabalho de contato entre as áreas que se debruçam sobre o estudo das sociedades:
“Falar de ‘ciências sociais’, como se costumava fazer, também parece algo obscuro para qualquer um que não acredite no modelo das ciências físicas (se é que esse modelo unificado de fato  existe) deve ser seguido por aqueles que se dedicam ao estudo das sociedades.[...] Decidi, portanto, empregar a expressão ‘teoria social’ (que inclui ‘teoria cultural’), [...] essa opção não implica a premissa de que as teorias genéricas são tudo o que os historiadores provavelmente encontram de interessante na sociologia e em outras disciplinas. Alguns conceitos, modelos e métodos empregados nessas disciplinas também têm suas aplicações no estudo do passado, embora estudos de caso de sociedades contemporâneas possam sugerir comparações e contrastes bastante produtivos com relação a séculos anteriores.[...] Continuo a acreditar que Marx e Durkheim, Weber e Mallinowski – para não mencionar outros – ainda têm muito a nos ensinar” (Burke, 2000, p.9).
As reflexões de Burke são bastante úteis para pontuar aspectos da relação entre a História e as demais disciplinas que têm o mesmo objeto de estudo – as sociedades humanas e seus sujeitos -, com a diferença de que na História, como vimos em aulas anteriores, o debate sobre o conceito de tempo é fundamental. Dentre os aspectos levantados por Burke, destaca-se, em primeiro lugar, a perspectiva de uma abordagem da história que dê conta do conjunto das relações sociais, mesmo que a temática tratada ou, ainda, o objeto de estudo específico, seja a trajetória de um indivíduo, como foi o caso da escrava Liberata, estudado na aula passada.
Em segundo lugar, que essa relação se elabora, por um lado, do ponto de vista teórico, na adoção de uma linha de interpretação que explique a dinâmica das relações sociais segundo conceitos específicos. Por exemplo: uma abordagem marxista vai trabalhar com o conceito de classe social, para explicar a dinâmica de organização dos diferentes grupos de uma sociedade. O conceito de classe social é um conceito da tradição teórica marxista e a sua aplicação deve levar em conta os debates dentro dessa linha.
Por outro lado, do ponto de vista metodológico, essa mesma relação se elabora através do uso de modelos e métodos provenientes de outros campos. Por exemplo: o estudo das imagens fotográficas, para se analisar as formas de comportamento  e as representações sociais de uma determinada época, se utiliza dos conceitos e métodos da Semiótica para compreender o processo de produção visual de sentido. Assim, a série de fotografias é trabalhada como uma mensagem cujos códigos de organização seguem determinada lógica que pode ser explicada por conceitos dessa disciplina.
Ambos os aspectos se complementam, tendo em vista que não se escreve a História sem uma teoria que explique e compreenda a lógica de organização das sociedades humanas. A ausência de um quadro teórico e metodológico numa pesquisa histórica leva necessariamente à produção de trabalhos descritivos que não se descolam do uso limitadamente empírico da documentação. Afinal de contas, como já foi dito em outras aulas, as fontes históricas não falam sozinhas: é necessário que perguntas lhes sejam feitas.
Entretanto, a forma como a História se aproximou da teoria social, ao longo do século XX, não foi nem simples nem linear. O historiador francês Jacques Revel, em seu artigo intitulado “História e Ciências Sociais: uma confrontação instável” (1998), discute a tensa relação entre História e Ciências Sociais, tomando a noção de interdisciplinaridade como elemento norteador desta relação. Revel dialoga com três tradições (incluindo a que  Braudel pode ser reconhecido) constituídas, desde fins do XIX e ao longo do século XX, que pautaram a produção do conhecimento social na França. Cada uma dessas tradições elaborou uma forma de se propor a relação interdisciplinar, levantando, cada qual, um problemática de caráter epistemológico diversa. Apesar de reconhecer que a problemática da tensão ente História e Ciências Sociais é mundial, Revel opta por tratar da peculiaridade do caso francês.
A primeira tentativa de estabelecer uma unidade para as Ciências Sociais é incentivada  pela sociologia do século XIX, marcada pela grande influencia do sociólogo francês  Emile Durkheim. Segundo tal tendência, todas as disciplinas humanísticas deveriam se considerar como especializações da única Ciência social- a sociologia – a única dotada de um método científico apto a estabelecer leis gerais do comportamento humano. Um modelo de compreensão do social organizado sob forte inspiração do modelo naturalista. Tal postura sofreria oposições a partir de diferentes tendências: tanto dos historiadores tradicionais quantos de outros, mas empenhados em dialogar com a crise da razão cientificista que se disseminava no debate intelectual.
A partir dos anos de 1920, no bojo da crise de hegemonia do paradigma cientificista/naturalista, surgem  novas propostas de se pensar a relação entre as disciplinas das ciências do Homem; dentre essas, destaca-se aquela que propunha a história como a disciplina-síntese dessas ciências. A história, por lidar com a complexidade do tempo social, estaria mais aberta e permeável a definir seus objetos de estudo a partir de uma estreita colaboração interdisciplinar, buscando, através da reflexão temporal, dar conta da natureza múltipla dos fenômenos sociais.
Na contracorrente da História como espaço da síntese social se colocou a Antropologia estruturalista, mais preocupada em identificar e reconhecer as estruturas sociais, propondo modelos de intelegibilidade nos quais a temporalidade pouco importava. É neste período que podemos incluir o manifesto de Braudel e suas críticas à utilização exagerada de modelos nas Ciências Sociais, apresentado no tópico anterior desta aula.
Revel finaliza a sua reflexão com um item denominado ‘O Tempo de confrontos?’. Neste ponto, destaca que a ampliação do território do historiador teve como conseqüência tanto a fragmentação de seus objetos quanto a extrema especialização dos estudos que marcaram os anos 1970 e 1980. Desse processo de fragmentação e especialização podem-se estabelecer dois níveis de uma crise que não se limitam à relação entre história e Ciências Sociais, mas que se ampliam para toda a produção do conhecimento humano.
1° Nível – crise dos paradigmas unificadores e da razão iluminista. Os modelos holísticos já não dão conta de uma realidade social plural e descentralizada.
2° Nível – necessidade de estabelecer os níveis das novas competências de conhecimento alicerçadas num conhecimento efetivamente interdisciplinar do qual as antigas fronteiras não dão mais conta. O estabelecimento de normas que regulamentem as diferenças é fundamental para se garantir o regime de cientificidade das diversas disciplinas das ciências do Homem.
Burke se alinha à perspectiva de Revel, mas inclui, em suas considerações, não somente a trajetória historiográfica francesa, mas a européia como um todo.  Estuda, no primeiro capítulo de seu livro “História e Teoria Social” (2000), como historicamente as relações entre a História  e as teorias sociais se estabeleceram. Avalia, na sua abordagem, que desde o século XVIII, com a presença dos historiadores filósofos, como Voltaire, as teorias da História eram, na verdade, grandes sistemas filosóficos para compreender a evolução da humanidade, confundindo-se os usos teóricos na História com as filosofias da História.
No século XIX, segue Burke em sintonia com as considerações de Braudel e Revel, as disciplinas acadêmicas se constituíram em campos especializados, cada qual num aspecto da experiência humana e, assim,  as fronteiras forma devidamente demarcadas. Coube aos profissionais das humanidades, no século XX, vivenciarem essa especialização e tentarem redefinir a lógica de configuração dos campos de conhecimento, rumo a uma perspectiva efetivamente interdisciplinar, como pondera Burke:
“Há motivos óbvios para uma relação cada vez mais estreita entre história e a teoria social. A mudança social acelerada praticamente se impôs à intenção dos sociólogos e antropólogos [...]. Demógrafos, ao estudar a explosão demográfica mundial, e economistas e sociólogos, ao analisar as condições de desenvolvimento agrícola e industrial dos chamados  países ‘subdesenvolvidos’, viram-se examinando as mudanças ao longo do tempo, ou seja, a história [...]. A meu ver, a ‘virada teórica’ por parte de alguns historiadores sociais e a ‘virada histórica’ de alguns teóricos são muito bem vindas [...]. Sem combinar a história com a teoria, é provável que não consigamos entender nem o passado nem o presente, [...] o interesse na teoria vem enriquecendo a prática da história, sobretudo no decorrer da última geração” (Burke, 2000, pp.34-35).
Entretanto, os tempos não são absolutamente dourados, continua Burke, sobretudo porque novos problemas surgem ao se tentar resolver os antigos impasses. A própria noção de ‘convergência’, muito utilizada para se defender a relação entre o campo das humanidades, hoje não dá conta da perspectiva defendida pelos campos, tanto na organização institucional quanto na disputa de verbas das agência de fomento à pesquisa. Nesse sentido, conclui o historiador inglês:
“Vivemos em uma era de linhas indefinidas e fronteiras intelectuais abertas, uma era instigante e, ao mesmo tempo, confusa [...]. O surgimento do discurso compartilhado entre alguns historiadores e sociólogos, alguns arqueólogos e antropólogos, e assim por diante, coincide com um declínio do discurso comum no âmbito das ciências sociais e humanidades e, a bem da verdade, dentro de cada disciplina.” (Burke, 2000, p. 35).
Assim, se, por um lado, a aproximação entre disciplinas gerou o surgimento de novos campos para o estudo da história, como veremos nas aulas subseqüentes, por outro, a tendência à fragmentação e à especialização extrema é um risco que devemos evitar, para não perdermos a necessária visão do conjunto.
Atividade 1 
O historiador italiano Carlo Ginzburg (1989), em seu clássico artigo “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”,  trabalha com a hipótese do surgimento de um paradigma (modelo epistemológico) do tipo semiótico entre 1870-80, que tem raízes muito antigas, mas que se explicita à luz das problemáticas suscitadas pela diversidade humana, própria das sistematizações científicas de fins do XIX, época de constituição das disciplinas modernas, notadamente as Ciências Humanas. Tal paradigma viria a superar o paradigma galileano, onde o geral era a base explicativa para o particular - teoria explica fenômenos individualizados. Dentro do paradigma semiótico ou indiciário, a noção predominante seria a de sinal, indício, marca, pista - o conhecimento individual que habilita conhecer o todo. O efeito estudado permite o conhecimento da causa.
Associe a hipótese de Carlo Ginzburg aos debates apresentados por Revel e Burke no segundo tópico desta aula.
15 linhas
3. História e Interdisciplinaridade
Vejamos agora o significado da noção de interdisciplinaridade defendida desde os escritos de Braudel de fins da década de 1950. Para tanto, tomaremos como referência dois verbetes de dois dicionários sobre conceitos históricos. Vamos a uma síntese  deles:
“Os métodos e as técnicas de pesquisa científica se renovam constantemente. As mudanças sociais e culturais trazem novos interesses historiográficos e, logo, é preciso criar novas técnicas para responder aos questionamentos que esses interesses trazem. Assim, com a pós-modernidade, diversas abordagens tomaram fôlego nas ciências humanas. Entre elas, a interdisciplinaridade, geralmente entendida como troca de conteúdo e métodos entre disciplinas, ultrapassando a segmentação do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade tradicional [...]
A interdisciplinaridade pode ser confundida com a transdisciplinaridade e com a multidisciplinaridade. A transdisciplinaridade é a conseqüência de uma síntese interdisciplinar, é um saber novo que se origina da interdependência de vários aspectos da realidade. Ou seja, é o resultado da interdisciplinaridade. Já a multidisciplinaridade, também chamada de pluridisciplinaridade, é a divisão do conhecimento em diferentes áreas, em diferentes disciplinas que apenas se sobrepõem. É o saber em seu estado tradicional [...]
Na História, por sua vez, a interdisciplinaridade não é nova, mas data da própria renovação do início do século XX [...]. Desde as décadas de 1910 e 1920 que os fundadores da escola historiográfica dos Annales, Marc Bloch e Lucien Febvre, já incentivavam o desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares. Tentavam, então, fazer uma História totalizante, que abrangesse o homem em sua complexidade de penar, agir e sentir. Para tanto, utilizaram instrumentos de disciplinas como a Economia, a Psicologia e a Sociologia. A fundação dos Annales, uma revista interdisciplinar por excelência, em 1929, teve como objetivo promover a aproximação da História com as demais ciências sociais. Desde então a escola dos Annales e sua sucessora, a Nova História, têm realizado intenso trabalho interdisciplinar, gerando inclusive novas abordagens históricas, como a História social, a História do Imaginário, das Mentalidades, a Geo-história. Todas elas promovendo uma síntese entre disciplinas e em saber que, apesar de ser histórico, também não deixa de ser sociológico, ou psicológico, ou geográfico [...]”. (Silva & Silva, 2006, pp.237-240).
Essa primeira definição associa a aproximação interdisciplinar a um projeto mais integrado para as ciências, não somente aquelas que lidam com as ações humanas, mas também as demais, que têm como objeto o universo sobre o qual as ações humanas se desenrolam. Conclama-se, assim, um novo modelo epistemológico que, mesmo sem defender a existência de uma teoria única (defesa insustentável para o pensamento científico contemporâneo), busca promover uma visão mais holística (global e sintética) sobre o universo social e natural: “Sobre o saber científico, a visão holística afirma que não há hierarquias entre as disciplinas, bem como a própria separação do conhecimento entre as disciplinas científicas é falsa, sendo a tarefa da interdisciplinaridade conectá-las para produzir um saber transdisciplinar” (Silva & Silva, 2006, p.238)
O segundo verbete para a definição de ‘interdisciplinaridade’, escrito por O. Dumolin,  foi tirado do “Dicionário das ciências históricas”, organizado pelo historiador francês André Burguière (1993):
Quando Paul Veyne julga que um livro de história é uma monografia sociológica ou que um livro de sociologia é um ‘tópico histórico’, ele considera a interdisciplinaridade ou mesmo a fusão das ciências do homem um fato adquirido. Para ele como para Evans-Prichard, declarando que a antropologia deve aprender com o historiador, mas que não resta a história ‘senão ser antropologia social ou nada’, Marc Bloch tinha razão distinguindo apenas uma ‘ciência do homem unindo o estudo dos mortos e dos vivos’. Desde 1912, J.H. Robinson, o pioneiro da ‘New History’.
A vontade, hoje, de derrubar os muros que separam as disciplinas que caracterizavam L. Febvre e os primeiros Annales parece coroada de êxito. Não só a história econômica, a demografia histórica, a antropologia histórica criam passarelas entre a história e as ciências sociais, mas também a lingüística e a psicanálise penetram no horizonte dos historiadores. As ciências da vida enriquecem a história do clima ou a do povoamento. O fenômeno já está bastante institucionalizado e inscrevem a interdisciplinaridade na formação dos estudantes de história.
No entanto, o nascimento das diferentes ciências sociais no fim do século XIX já havia desencadeado uma série de conflitos ao mesmo tempo teóricos e coorporativos, entre os quais o que opôs os historiadores franceses e o grupo de Durkheim foi, provavelmente o mais sintomático [...]
Segundo a organização universitária de cada área cultural, o diálogo universitário assume formas muito variadas. Assim, a antropóloga é, a partir da década de 1950, uma referência para os historiadores britânicos, enquanto a sociologia inglesa, pouco valorizada na Universidade, em nada inspirou os historiadores ingleses antes do fim da década de 1960. Na França, ao contrário, o diálogo, muitas vezes conflitante, se esboça entre historiadores e sociólogos. Em compensação, a história econômica francesa se desenvolve à distância das faculdades de direito e da economia teórica, enquanto a história econômica americana, integrada nos departamentos de economia, dobra-se as normas de econometria.
Se os historiadores encaram de modo diferente a interdisciplinaridade segundo os países, a utilização das disciplinas vizinhas pode variar grandemente[...], a interdisciplinaridade pode tornar-se submissão aos métodos e técnicas das ciências sociais, econometria retrospectiva, politologia ao avesso...Nesse caso, a fusão das ciências do homem transforma a história numa coleção de experiências, até mesmo de exemplos, para uso das ciências cujo objeto já está estabelecido [....] Assim, a interdisciplinaridade se manifesta antes por uma justaposição das abordagens, como os estudos de área, os conhecidos area studies, do que mediante uma verdadeira integração tendente à criação de uma Ciência do Homem” (Dumoulin, 1993, p. 452-453)
Esta definição expõe, por um lado, os limites teóricos da interdisciplinaridade, mas, por outro, aponta o avanço dentro da perspectiva institucional num horizonte da formação atual do historiador.
No Brasil, a trajetória de relacionamento entre as ciências sociais e a história se fizeram em compasso com a criação das faculdades de ciências humanas na USP, em 1934, e na Universidade do Brasil (atual UFRJ), em 1936, com uma ampla hegemonia das ciências sociais em relação à história. Somente foi a partir da consolidação dos programas de Pós-Graduação em História, nos anos 1980, que esse quadro modificou (com a autonomização do campo historiográfico e a incorporação de diferentes perspectivas teóricas à prática historiográfica). A atividade que segue amplia um pouco a reflexão sobre esse tema.
Atividade 2 
O jornal Folha de São Paulo publicou, no dia,10 de junho de 2006, a seguinte reportagem:
Cânone em questão - Intelectuais discutem a atualidade das obras clássicas sobre o Brasil e as relacionam à inserção do país na modernidade

RAFAEL CARIELLO; SYLVIA COLOMBO - DA REPORTAGEM LOCAL
"Eu não digo que são os três livros fundamentais para compreender o Brasil. Não digo que são os três maiores. Para mim e para minha geração, são aqueles três. Eu me referi à minha geração; nós aprendemos o Brasil naqueles três livros."
As obras são "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr., e "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, livro que neste ano completa 70 anos de sua publicação.
Quem fala é Antonio Candido, crítico literário cuja estatura é comparável à dos três grandes que ele ajudou a estabelecer como autores das interpretações fundamentais sobre a sociedade brasileira, em prefácio de 1967, justamente para o livro de Sérgio Buarque.
Ocorre que -disse Candido à Folha- o estabelecimento dessa espécie de cânone, a partir de seu texto "O significado de "Raízes do Brasil'", deu-se à sua revelia e baseado no que ele chama de "um mal-entendido".
Segundo o autor de "Formação da Literatura Brasileira", há livros tão importantes antes e depois dessa tríade nascida sob o governo de Getúlio Vargas. Ele diz nunca ter negado isso, já que se tratava de um relato pessoal de influências, e lamenta ter sido cobrado até "por pessoas de responsabilidade" pela ausência deste ou daquele livro no suposto panteão do pensamento social brasileiro.
Óbvio que o mal-entendido diz muito da importância e do peso para a cultura brasileira do próprio Candido e, claro, do significado das três obras.
Vindas a público no espaço de uma década (o primeiro livro, de Freyre, em 1933; o último, de Caio Prado, em 1942), essas leituras, de fato, ultrapassaram os limites da academia -que, a rigor, começava a ser estabelecida àquela altura no país- e impregnaram a visão corrente que os brasileiros têm de si mesmos e do Brasil.
O elogio à mestiçagem como característica peculiar e positiva do país, a compreensão da evolução da economia brasileira a partir de ciclos ligados à exportação de produtos-chave e a caracterização dos brasileiros como pouco afeitos a normas gerais e impessoais definem o Brasil mesmo para quem nunca leu as três obras.
Queira Candido ou não, elas passaram também a ser tratadas como um conjunto fechado e de referência (mesmo que para ser questionado) por autores tão importantes quanto Fernando Novais, Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso e vários outros.
É preciso não criar outro mal-entendido: Candido não lhes tira o valor. Referindo-se à sua geração, no prefácio a "Raízes do Brasil", diz: "São estes os livros que podemos considerar chave, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo".
Nisso, autores contemporâneos seguem sua análise. Luiz Felipe de Alencastro, professor de história do Brasil na Universidade de Paris - Sorbonne, diz que "os três livros mencionados estavam reinterpretando o país à luz das mudanças induzidas na sociedade tradicional pela Revolução de 30".
Questionado sobre a possibilidade de incluir outros títulos entre os fundamentais para a compreensão do Brasil, cita "Formação da Literatura Brasileira", do próprio Candido, e "Formação Econômica do Brasil", de Celso Furtado.
Nicolau Sevcenko, professor da Universidade de São Paulo, que diz não simpatizar com a idéia de um cânone, acha que os três livros têm a virtude de "recompor o repertório conceitual para entender aquela nova situação". Também da USP, Boris Fausto acrescenta: "São ensaios que fazem parte daquele contexto de transição política, era uma época em que o Brasil pensava que estava começando de novo".
Já o pernambucano Evaldo Cabral de Mello aponta para o fato de a raiz desse contexto estar mais para trás. "Essa necessidade de interpretar vem da tradição portuguesa e espanhola do século 19, quando era necessário se perguntar porque as coisas tinham dado errado. Nos anos 30, esse questionamento era condizente com o Brasil. Hoje essas perguntas já não são tão necessárias."
Elias Tomé Saliba, da USP, concorda com a idéia de cânone "porque esses livros romperam com as compreensões anteriores do Brasil que seguiam as receitas naturalistas, deterministas, racistas etc. São importantes porque disseram, cada um à sua maneira, que o Brasil não tem essência, tem história. Constituíram mergulhos originais e pioneiros na história brasileira". Fausto acredita que chamar a tríade de linha de frente na sua época é "mais do que justo, mas hoje é preciso considerar que houve uma produção grande, ainda que faltem amarrações mais amplas dos temas estudados".
O psicanalista Tales Ab'Sáber, que tem lido os "clássicos" da interpretação social do Brasil com o intuito de ali descobrir formas de subjetividade e suas relações com a sociedade, afirma que o alcance dos três livros é "muito impressionante". "Foram escritos num tempo em que a universidade ainda era muito frágil. São emergências de talentos individuais, relativamente jovens, de uma potência intelectual de caráter acadêmico, praticamente sem contexto. Isso aproxima esses trabalhos de um fenômeno como o do Machado de Assis."
Ele vincula sua força e permanência não só à circunstância imediata de responderem às mudanças da Revolução de 30, mas ao fato de tratarem de um problema que, de certa maneira, só muito recentemente se esgotou. "Os três têm esse poder de espécies de obras-síntese do encaixe da situação do Brasil no processo da modernidade, do lugar do país no mundo. Não deixa de ser uma situação moderna por excelência."
Apesar da força desses livros, o cânone sempre esteve em questão. A análise histórico-sociológica de Raymundo Faoro em "Os Donos do Poder", por exemplo, é citada por alguns estudiosos, como Sevcenko e Saliba, como um dos livros que poderiam ser acrescentados à lista de fundamentais para entender o Brasil.
Já o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos defende a inclusão de Darcy Ribeiro: "Essa "santíssima trindade" é um engodo ideológico, uma falcatrua acadêmica. Deixou de fora "Vaqueiros e Cantadores", de Câmara Cascudo, e Darcy Ribeiro, que foi ficou de lado porque aderiu ao getulismo".
Analise a matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, do dia 10 de junho de 2006, apontando a posição dos historiadores hoje em relação às matrizes da historiografia brasileira dentro da perspectiva interdisciplinar disseminada na historiografia brasileira ao longo do século XX.
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Nesta aula, vimos que a relação entre História e ciências sociais está associada ao debate sobre o estatuto científico do campo de conhecimento que se debruça sobre as atividades humanas e suas relações sociais.
O historiador catalão Julio Aróstegui, no seu livro “A pesquisa histórica: teoria e método” (2006), apresenta a trajetória de encontros e desencontros entre os paradigmas mais objetivistas e as propostas mais relativistas; uns defendendo a possibilidade de um conjunto de ciências que teriam como objeto o homem, e outros rejeitando terminantemente essa possibilidade.
Para esse historiador, há que se diferenciar ciência e prática científica, sendo esse último o princípio mais adequado para associar à História. A cientificidade da prática historiográfica, escreve Aróstegui, “depende, antes de mais nada, do grau de elaboração e aplicação de um método que participe das características da ciência e se adapte, mediante um trabalho teórico rico e suficiente as peculiaridades do seu objeto. A aplicação desse método, portanto, não dispensa um trabalho teórico paralelo” (Aróstegui, 2006, p.77).
Na seqüência, Aróstegui esclarece que, na impossibilidade de se defender  a função de elaborar leis gerais do desenvolvimento humano para  as ciências sociais e, em particular para a História, essas não seriam ciências no sentido “duro” do termo, mas práticas científicas. Segundo o autor, o problema  de uma ciência da História se manifesta em torno de três questões fundamentais: “a singularidade dos atos humanos, a globalidade do meio em que é possível compreendê-los e a temporalidade que constituiu sua sucessão” (Aróstegui, 2006, p.78)
Essas três questões impossibilitariam a elaboração de afirmações com um grau de generalidade suficiente para se definir como um princípio legal (proveniente de uma lei científica). Dessa forma,  com a historiografia, como com outras ciências sociais, não cabe falar de uma ciência no sentido pleno, mas de práticas científicas que se apóiam em generalizações para proceder a explicação tanto do singular quanto do recorrente na experiência humana:
“Não há possibilidade de pesquisa sócio-histórica, nem de nenhum outro tipo, que não faça uso de generalizações [...]. O comportamento temporal das sociedades mostra, indubtavelmente, regularidades, ao menos em alguns de seus níveis. Se a História não fosse mais que o desenvolvimento singular de indivíduos e grupos, o encadeamento de ‘fatos sucedidos’, não se poderia estabelecer um conceito como o de historicidade, quer dizer, o de inelutável sujeição ao tempo de tudo o que existe” (Aróstegui, 2006, p.81)
Aróstegui conclui sua reflexão sobre a historiografia como uma ciência social, apoiando-se na definição do historiador alemão Reinhart Koselleck, quando este afirma: “a história enquanto ciência não tem notoriamente nenhum objeto de conhecimento específico, mas o partilha com todas as ciências sociais e do espírito” (cit. Aróstegui, 2006, p.81)
Atividade 3
No âmbito do ensino da História nos níveis fundamental e médio, a interdisciplinaridade é apresentada como princípio nos Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCNs, a partir da proposta dos temas transversais: ética, pluralidade cultural, saúde, orientação sexual e meio ambiente. Entretanto, o desenvolvimento desses temas transversais dentro do ensino da História pressupõe a existência na prática da interdisciplinaridade, sob o risco de se tornar apenas a transposição ou colagem de uma disciplina com outra.
Em geral, os livros didáticos de História do Ensino Médio se apresentam como estando de acordo com os PCNs. Nesse sentido, devem trabalhar com uma perspectiva interdisciplinar. Recupere o seu livro de História do Ensino Médio, que já foi solicitado para outras atividades no nosso curso, e faça uma avaliação da forma como ele constrói o conhecimento histórico. Nessa avaliação, você deverá destacar se o livro apresenta uma perspectiva teórica, se os conceitos são apresentados de forma crítica e se a forma narrativa do livro leva à reflexão e à produção de um conhecimento crítico.
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Resumo:
A relação que a história estabelece com essas disciplinas também vem se modificando ao longo do tempo e, de diferentes maneiras, em contextos acadêmicos distintos. Vale lembrar que o século XX superou a noção de ciências auxiliares da História, reforçando  este relacionamento interdisciplinar no sentido de romper com a perspectiva imperialista da história e situar as possibilidades de contato no marco de uma discussão de caráter teórico-metodológico. Daí, atualmente, todo debate sobre o campo historiográfico centrar-se em propostas transdisciplinares, ou seja, mais do que uma mera colaboração entre disciplinas, ou um trabalho em equipe, o que se discute é a capacidade de a história teorizar sobre seus objetos de estudo e operá-los a partir de metodologias coordenadas.  Um exemplo desse tipo de abordagem seria a análise das relações sociais a partir do estudo das redes de sociabilidade tal como a Antropologia propõe, utilizando-se, para tanto, de um aporte semiótico para se avaliarem os códigos de comportamento e as representações sociais que caracterizam a distinção social entre os diferentes grupos.
O primeiro historiador a apresentar uma proposta de inserção da História no campo das Ciências Sociais, foi o francês Fernand Braudel no final dos anos 1950. No que pese ter sido acusado de defender o imperialismo da História em relação aos demais campos das humanidades, Braudel orientou o debate entre os campos em torno de  quatro grandes temas: a questão da existência de um objeto comum às ciências humanas; o problema da irredutibilidade das ciências humanas entre si; sobre o uso de modelos e tipificações em Ciências Sociais; e, por fim, posiciona-se contra a especialização extremada e em prol da cooperação necessária .
Finalmente, o debate sobre a relação entre História e ciências sociais recupera, em grande medida, o estatuto da história como forma de conhecimento. Nesse sentido, a posição defendida na historiografia hoje abandou a defesa da História como uma ciência da mesma natureza que as matemáticas, para valorizar a produção do conhecimento histórico como uma prática científica.
Informações sobre a próxima aula: Na próxima aula,aprofundaremos a discussão sobre os campos da historiografia atual abordando os domínios da História, suas áreas e linhas de pesquisa.
Referências.
Aróstegui, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método, Bauru: EDUSC, 2006.
Braudel, Fernand. “Unidade e Diversidade das ciências do Homem”, IN: História e Ciências Sociais, Lisboa: Ed. Estampa, 1986.
Burke, Peter. História e teoria social, São Paulo: editora UNESP, 2000.
Ginzburg, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, IN: Mitos, Emblemas e Sinais, SP: Cia das Letras, 1989, 143-181
Revel, J. “História e Ciências Sociais: uma confrontação instável”. IN: Boutier, Jean & Julia, Dominique (org.) Passados Recompostos: campos e canteiros da história, Rio de Janeiro: Editora UFRJ/FGV, 1998, pp.79-90
Silva, Kalina Vanderlei & Silva, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos, São Paulo: Ed. Contexto, 2006
Sites na Internet.

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